CRÔNICA

O rei da cocada azul

Arthur Eduardo
Casa e Rua
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3 min readMar 28, 2023

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foto da casa

As cocadas se diferenciam no sabor, ou visualmente na cor, e são mais comuns em pequenas barraquinhas de comércio. Em São Leopoldo, por volta de 2007, era fácil de achar o shopping da cidade em construção, um gremista conspirando teorias de como venceriam o Boca Juniors na final da Libertadores e um consumidor de cocadas da casa que vendia cocadas de cores incomuns.

Não que eu ache o azul das cocadas que tinham para vender uma cor errada; inclusive julgo como a melhor cor possível para se entrar em campo em uma partida de futebol. Mas o azul da cocada era o diferencial em comparação a tudo que um dia já existiu no mercado de doces de coco, desde que seja em São Leopoldo e na rua onde nasci.

A casa da cocada azul não foi eternamente conhecida por isso e inclusive nem durou muito tempo. O tempo foi o menor entre os locatários do imóvel. O segundo a alugar a casa, com o tempo, virou amigo da vizinhança. Não que o Homem Aranha morasse na casa ao lado na minha infância. Mas o que antes era um comércio de cocadas virou a casa de um amigo com quem eu jogava bola, conversamos durante a tarde e só não íamos para o mesmo colégio porque o dele tinha ensino médio e o meu não. O meu no máximo tinha uma banda e aulas fáceis de matemática.

O primeiro verão de Gabriel na nossa rua foi sem cocadas, mas fizemos tudo que uma mãe desaprova: futebol até tarde da noite na rua, pouco estudo e, além disso, um dia meus primos mais velhos e o Gabriel picharam o muro do vizinho que furava a bola quando caía no seu pátio. Um adulto que tira a diversão de crianças e fura a bola é alguém que foge tanto do bem-estar social que teria até perfil para dirigir o meu time do coração. Tanto Edis, o vizinho furador de bolas, quanto quase todos que foram presidentes do Grêmio já me deixaram ir para casa profundamente tristes e sem futebol.

A casa citada era alugada, e o dono era o vizinho. A separação de quem pagava todo mês e de quem recebia era uma cerca pequena e mal feita. O dono, um simpático carteiro, gastava o aluguel recebido na compra das bebidas alcoólicas mais questionáveis do mundo no bar ao lado e vivia a vida que só um lateral ruim que assinou por quatro anos e vive machucado poderia viver; ele tinha o dinheiro dele garantido sem precisar fazer muito ou algo.

As bebidas perpetuaram ininterruptamente desde muito antes da primeira cocada ser vendida há quase 20 anos. A vida era tranquila, até que o aluguel salgado fez Gabriel e família optarem por se mudar. Uma casa menor e longe do carteiro com seus 12 cachorros e seu alcoolismo. Sem alguém para alugar, a casa entrou em profundo desuso. Uma história abandonada a 50 metros de onde vivi e onde muitas histórias e muitos laços foram criados. Assim como um tênis desamarrado, tudo pode ser refeito, e hoje a casa voltou a ser ocupada. A ocupação não é legalizada, nem institucionalizada e muito menos paga aluguel ao carteiro. Hoje quem mora lá é meu gato Vitório. A residência de Vitório é compartilhada entre minha casa — onde se alimenta — e esta casa abandonada onde gosta de dormir e passar o dia. Corre pelo matagal que cresceu, dorme na varanda que ruiu e se esgueira pela porta que enferrujou, mas quando fica com fome precisa voltar para a minha casa. O real dono da casa que um dia vendeu cocadas azuis.

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Arthur Eduardo
Casa e Rua

Barbeiro , estudante de jornalismo, Front-end(1/5) e cronista de instagram