PERFIL

Vida solidária

Vinicius Alves
Casa e Rua
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7 min readApr 4, 2023

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Rosane dos Santos, 48 anos | Foto: Vinicius Alves

Quem entra pelo portão marrom e se depara com um silêncio que chega a ser chato por alguns momentos, talvez nunca imagine o agito que rolava na 645. Atualmente, moram duas pessoas por lá: A Rosane, 48 anos, desempregada e dona de casa, e o seu filho Erick. Vamos focar nela. É unânime a opinião de que o vai-e-vem de gente que já tomou conta daquela casa era por sua causa. Rosane é clara ao me afirmar que sente saudade das visitas de todo final de semana, das confraternizações em família e de qualquer outro tipo de atividade que envolva gente.

Mas também é bem direta quando classifica o tipo de visita que não gosta de receber: gente mala. Diz que a casa é aberta para todo mundo, mas não me esconde a preferência pelas pessoas que “agreguem de alguma forma”. Explica que visita boa é aquela que deixa algo de positivo em sua vida ou, ainda, que ela mesmo consiga fazer a diferença para essa pessoa, seja dando um conselho ou ajudando a encontrar a solução de um problema.

Ela cita até um exemplo sobre isso. Sua relação com a casa 645 é de anos. Aos 20, se casou e logo teve o primeiro filho, Eduardo. Foi então que sua história começou no local. Entre 1994 e 1998, morou com sogra, sogro e dois cunhados — a casa pertencia aos sogros.

Lembra que desde essa época a casa era um agito. Os sogros gostavam de receber gente todo final de semana. Porém, Rosane nunca gostou disso. E está aí a diferença. Nunca encontrou o real motivo de tanta gente passar por lá. “Não tinham propósito”, diz. Já hoje em dia, gosta de receber os conhecidos porque sabe que vão agregar de alguma forma.

Depois de 1998, ela e a família viveram em outros dois locais até voltarem novamente para a 645, em janeiro de 2000. A casa ficou de herança para o marido, e então pôde começar a receber as visitas que lhe agradavam.

O entra e sai, na grande maioria das vezes, se resumia a familiares. Era gente vindo do interior para consultar em Porto Alegre ou até mesmo alguém buscando seus sábios conselhos. E Rosane sempre esteve lá, de braços abertos recebendo esse pessoal.

Essa é a sua grande característica. Ajudar os outros. Ela é aquele tipo de gente que faz questão de encontrar a solução para um problema. “As coisas sempre têm um jeito”, afirma.

O lado solidário, preocupado com as pessoas, vem desde a infância. Mais velha entre três irmãos, era a responsável da casa. A mãe Leci criou os três filhos sozinha e nunca teve tempo para parar em casa. Trabalhava bastante na busca do sustento da família e a responsabilidade, naturalmente, caiu sobre Rosane. Quando viviam de favor na casa da patroa de sua mãe, os três precisavam ficar sozinhos. Aos seis anos de idade, Rosane já tomava conta do irmão Juarez (quatro anos) e da irmã Roseli (pouco mais de um ano).

A vontade de ajudar o próximo, seja qual for problema, vem desde esses tempos. Empregados da patroa também viviam naquela casa. Durante o dia, todos iam trabalhar e os três ficavam sozinhos. Uma vez, a tal patroa, por algum motivo que ela não lembra, deixou uma mulher doente ficar no pátio da casa. Essa mulher tinha um problema na perna, algo bem grave e mal conseguia sair de um sofá que ficava por lá. Rosane sempre ouvia gemidos de dor e reclamações de fome vindos do pátio.

Foi então que teve a ideia de alimentar a mulher. Porém, não sabia como, pois viviam de favor e a comida era contada. Pediu para a mãe ensiná-la a cozinhar um ovo. Depois de muita insistência, conseguiu colocar o plano em prática. Porém, tinha um obstáculo: como ficava trancada em casa durante o dia todo, não conseguia chegar até o local em que a mulher estava.

O único meio de comunicação entre elas era uma pequena janela aberta, onde Rosane conseguia enxergar parte do sofá em que a mulher permanecia deitada. A solução foi enrolar o ovo numa sacola e jogá-lo pela janela, tentando acertar o local — caso não conseguissem, dificilmente ela comeria, tendo em vista que não conseguia caminhar. Rosane não lembra por quanto tempo ela e o irmão fizeram isso. Apenas se recorda que, diariamente, deixavam de comer um dos ovos que tinham direito para então jogá-lo pela janela sem que ninguém descobrisse.

Essa história é uma das que ela mais conta sobre sua infância. Inclusive, quando a perguntei sobre uma memória, foi a primeira coisa que ouvi. E creio que nenhuma outra se encaixaria tanto na sua vida quanto essa.

Três anos depois, aos nove, se mudou para a primeira casa própria da família. Mas nada mudou. Se dividia entre escola, os afazeres do lar e os cuidados com a irmã mais nova. As marcas dessa época são bem perceptíveis em suas mãos. Desgastadas, refletem o tempo em que se desdobrava a lavar as roupas de casa — lembra que chegou a lavar 15 calças jeans de uma só vez.

Enquanto cuidava da casa para a mãe seguir trabalhando, apenas vivia. Passou a adolescência toda com essa rotina, sem muita perspectiva de nada porque simplesmente não havia muito o que planejar. O que restavam eram as idas à escola, as partidas de vôlei na rua com os amigos e as vezes que conseguia ser convidada para alguma festa de aniversário aleatória.

Um dos seus desejos era ter começado a trabalhar mais cedo, assim como fez o irmão, mas a casa precisava de algum responsável. Se durante a adolescência não havia essa possibilidade, depois de engravidar, menos ainda.

Seu primeiro emprego veio apenas em 2007, quando o filho mais velho estava na adolescência, e o mais novo já não dependia muito dela. Rosane foi aprovada em um concurso da Prefeitura Municipal de Porto Alegre para atuar como Agente de Combate a Endemias (basicamente para trabalhar no combate à dengue). Esse tipo de concurso era temporário e anualmente precisava ser renovado. Depois de ser aprovada pela primeira vez, foi reprovada na segunda.

Lembra que naquele momento não havia entendido o porquê de ter reprovado, pois era um trabalho a que se dedicou muito. Logo em seguida, quando pensava que ficaria mais um tempo desempregada, soube o motivo de tudo aquilo. Na época, precisou dedicar-se a cuidar de um familiar que havia sido diagnosticado com câncer. “Deus sabe o que faz!”, exclama. Para ela, caso tivesse sido aprovada, não haveria como se dedicar ao máximo para acompanhar o tratamento dessa pessoa.

Coincidência ou não, fato é que, após o parente terminar o tratamento e se curar da doença, foi aprovada novamente no concurso e voltou a exercer a profissão em 2009. Nessa época, também se dedicava a um projeto social que liderava, junto do marido, na igreja que frequentavam. A ação social distribuía pratos de comida e doava roupas aos moradores de uma vila em Porto Alegre, onde está localizada a casa 645. Desde esse tempo, virou uma espécie de referência na comunidade. Nada muito diferente do que ela é hoje.

Se antes o pessoal batia à sua casa implorando por um prato de comida ou por algumas peças de roupa, hoje pedem auxílio nas marcações de consulta no posto de saúde da região. Isso porque, em 2018, começou a trabalhar como Agente Comunitária. Em vez de caminhar pela comunidade para investigar focos de dengue, passou a visitar os moradores que dependiam de algum serviço do SUS.

Permaneceu nessa rotina até março de 2021, quando uma Lei Municipal extinguiu seu cargo. O que não deixou de fazer parte do seu dia a dia foi o auxílio aos moradores da região. Mesmo desempregada, seguiram a procurando como referência do Posto. E ela ajuda com boa vontade.

Isso é um dos poucos fatos que costumam “agitar” sua rotina. A ideia é voltar a trabalhar assim que possível. Sente saudade dos dias agitados de Posto de Saúde, de lidar com pessoas de diferentes locais e das amizades que fez pelo caminho.

Nas vezes em que me recebeu para conversarmos, encontrei ela sentada em uma das cadeiras da mesa da cozinha. Em todas as ocasiões, sempre a mesma cadeira branca, de escritório e com regulagem de altura. Sua rotina tem sido quase que um revezamento entre ficar ali, atendendo quem quer que seja no WhatsApp, e as tarefas domésticas.

Além do filho mais novo, tem outras duas “filhas” a quem dedica o mesmo amor de forma igualitária: as cadelas Laila e Belinha. A segunda, inclusive, outro baita exemplo do seu amor para com os outros. Pertencia a dois primos, que tiveram que se mudar e não conseguiriam mais ficar com ela. Rosane, sem pensar duas vezes, a trouxe para junto da Laila.

Quando não está realizando alguma tarefa doméstica ou dando de comer para as duas “filhas”, está regando as 37 plantas que cria no pátio. As plantas e a dupla de quatro patas são o que podemos chamar de coisas que refletem a personalidade da dona de casa.

Já a calmaria da 645, ela diz que vai terminar. Sua intenção é voltar com as confraternizações de amigos e familiares nos finais de semana. Sente saudade de gente em sua casa. A saudade é tão grande, que precisou tomar medidas drásticas. Trocou a mesa da cozinha. Diz que precisou fazer isso porque toda vez que olhava para o móvel, sentia um vazio. A mesa, grande e feita de uma madeira mais rústica, cabia pelo menos oito pessoas. Trocou por uma mais simples, de formato redondo e cor branca, onde cabem umas quatro pessoas.

As poucas cadeiras em volta da mesa representam a transição que estão vivendo por ali. Uma cadeira de cada cor, de cada tipo, nenhuma pertencendo à então nova mesa. Ela promete que as coisas vão mudar por ali. Quer trazer vida de volta.

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