PERFIL

Lembranças das “minhas” ruas

Barbara Souza
Casa e Rua
Published in
7 min readApr 4, 2023

--

“Não sei precisar, minha filha, quantos anos se passaram”. Do tempo da pergunta ao tempo da resposta, minutos ou horas se passam. Dona Inah, com “h” no fim, como gosta de frisar, ou Vó, é uma senhora que caminha com dificuldades, cuidada por suas duas filhas, no auge dos seus 96 anos, que parece resgatar de algum lugar da memória momentos vividos em várias casas, em várias ruas.

Uma senhora negra, cheia de sinaizinhos no rosto, curvada devido à idade, com os cabelos noventa por cento brancos e que não possui rugas. Uma avó que, apesar das dificuldades de locomoção, não deixa de tomar seu campari e seu chopp, faz suas palavras cruzadas e lê seu jornal todos os dias.

O sorriso, a serenidade e a delicadeza no olhar de Vó Inah. |Foto Bárbara Souza

Primeira casa

Morando na Lobo da Costa, de número que não se recorda, no bairro Azenha, em Porto Alegre, numa casa simples, criou um laço de amizade. Nesse momento ela sorri e diz: conheci meu melhor amigo ali. Ao ser perguntada sobre quem era esse amigo, seu semblante muda com traços serenos. É o Lupi.

Fiquei pensando quem era o Lupi. Nesse momento lembro daquele seriado da Netflix. Vó parada me olhando tenta entender de quem se travava. Mas na verdade o melhor amigo a que ela se referia era Lupicínio Rodrigues.

- Ah, ele era lindo! Bem magrinho, franzino, as meninas da minha rua eram apaixonadas por ele, eu querendo ser só amiga. Se hoje tivesse tecnologia, o contato com seu melhor amigo não se perderia.

Em seu potinho de memória ao qual tenho acesso, vou mexendo aos poucos. Vó, nesse momento, relembra o ano de 1934, quando aos oito anos perdeu sua mãe. Mamãe, como gosta de lembrar, faleceu de tuberculose ou tísico como falavam na época. “Morreu fraca”, lembra.

Vó fica um pouco quieta. Espero o tempo dela, afinal são 96 anos de história. Retomando a conversa, dona Inah lembra com clareza de quando queimaram os casacos de pele de sua mãe. Queimaram tudo que ela tinha, em função da tuberculose. Minha mãe era muito linda!

Me atrevo a perguntar: e o seu pai? Ela se levanta com dificuldade e caminha até a janela.

- Ele disse que não tinha filhos e não quis saber deles.

Foi assim que, depois da morte da mãe, ela e seus quatro irmãos foram separados. Faço uma pausa, percebo que seu semblante muda para tristeza. Neste momento a convido para um café. Com entusiasmo Vó aceita e ainda pergunta se iríamos continuar conversando.

Segunda casa

Nos seus oito anos de idade muda-se para outra casa. Não lembra o endereço e nem sabe precisar em que mês foi. Nessa casa, começa a trabalhar como empregada, ainda pequena, com a Dona Sílvia.

Dona Sílvia foi importante para seu crescimento, ensinou a ler, escrever e inclusive sobre as questões de virar “mocinha” ou “receber o seu Cardoso”, que era como chamavam para não dizer menstruação, que na época era considerado algo feio. Foi Ana, uma grande amiga sua, quem ensinou assim:

- Ah, minha filha, a Ana era do interior, imagina você, como não deveria ser naquela época (risos)! Ai que coisa, Seu Cardoso. Hoje em dia até na televisão eles falam. Mas na nossa época era feio.

Lembra que não podia deixar os paninhos da menstruação de molho senão apanhava. Permaneceu com Dona Sílvia não sabe por quanto tempo, até que conheceu o Senhor Eroni.

Na época ainda solteiro, ela cuidava da casa e dele como uma mãe. O tempo faz com que não se recorde de dias, anos específicos, mas se lembra de quando ele casou com a Graça. Foi Vó quem disse: eu mando, eu faço tudo e não se meta no meu serviço. Ela sorri novamente e diz: sou danada né, minha filha!

Terceira casa

Na década de 40, Vó muda-se novamente para Ilhota. Agora mais “madura”, começa a sair nos bailes e conhece suas amigas. Os bailes eram dançantes e de carnaval, tinha o Matinê no clube Floresta Aurora e ela participava do grupo das Orquídeas, uma banda feminina de Carnaval.

Acessando esse novo campo de sua memória, Vó fica muito feliz.

- Os bailes de hoje não são como os da minha época, quando as moças e os moços se namoravam, mas ficavam só segurando a mão.

Nessa época dos bailes de carnaval conheceu Ciro. Um senhor negro, alto, bem quisto, bem-arrumado, como se recorda. Ainda morando na Ilhota, casou-se com o Ciro, tiveram quatro filhos: Luis Fernando, Elaine, Iara e Jorge. Durante o período em que morou na Ilhota, Vó lembra das enchentes que ocorriam durante as chuvas.

- Ih, minha filha. Cansei de levantar meus móveis, teu dindo (Luis Fernando) brincava na água. E eu com medo das cobras. O guri era tinhoso. Já a Elaine só chorava, essa tinha que dar uns puxões de orelha, a Iara bem bebezinha e o Pico (Jorge) estava a caminho.

Foi quando o irmão da Vó, o falecido tio Pitico, alertou que eles tinham que se mudar de onde viviam e ir para um lugar melhor. [mudei o início só pra não repetir de novo nessa época no início do parágrafo, como no parágrafo acima]

Quarta casa

Com sua saída da Ilhota, Vó, Vô e as crianças partiram para o Bairro Bom Jesus, aqui na capital. A casa ficava na Rua da Páscoa, número 298. Lembra com detalhes da casa verde, de madeira em cima, material embaixo, janelas amarelas, com pátio bem grande e de portão branco. Pergunto uma situação vivida ali que nunca vai esquecer.

Certa vez ao fazer feijão o falecido irmão, o Pitico, assustou-se com o barulho que a panela fazia e queria jogá-la pela janela. Ou quando tinha um galinheiro e o galo Sai Pra Lá filho da galinha Niné corria atrás das crianças. O famoso galo um dia atacou os pés de vô Ciro que deu com pano molhado em cima dele. Não se sabe quem ficou mais furioso: o galo ou o Vô.

- Minha filha, lembrei de uma coisa. Quando o Toco (Luis Fernando) juntava todo mundo e fazíamos rodas de samba e churrasco no pátio que se estendia até altas horas. Tu era pequena, não deve lembrar. Ah, como era bom! (Risos). E tinha a vizinha que implicava e no dia seguinte colocava aquelas músicas chatas de igreja.

Aproveito o momento e continuo a conversa. Me atrevo a perguntar se nessa casa ela foi mais feliz. Sua resposta foi sim. Vou mais a fundo no baú de lembranças da Vó. Chegamos ao momento de pausa para um café.

A conversa seguiu com mais lucidez. Ela fala e recorda mais dos tempos vividos na casa da Bom Jesus. Temos algo a mais para contar, Vó? Prontamente ela se ajeita na cadeira que agora está com almofada para sua coluna e começa a contar mais alguns detalhes de sua vida na Bom Jesus.

Em alguns momentos, ela para, olha pra mim e sorri. Entendo o que ela quer me dizer. Foi a casa mais feliz de sua vida.

- Sabe, minha filha, vivi momentos muito bons na casa da Bom Jesus. Até faz tempo que a Nani (Elaine) não me leva lá de carro.

Quanto mais mexemos no seu baú de memórias sobre a Bom Jesus, há um momento peculiar e soa até particular de nossa conversa em que nos emocionamos. Conta que, quando nasci, a casa voltou a sorrir e a florir. Não lembra ao certo o dia em que cheguei, apenas que ficou muito feliz e saiu correndo para me pegar nos braços.

As lembranças da Bom Jesus nos renderam muitas risadas. Nos momentos especiais que tivemos esteve sempre presente uma boa xícara de café da tarde.

- Como é bom a gente lembrar de algumas coisas, né minha filha, já estou com quase cem anos, tomando café. Café e banana, duas coisas que eu amo!

Quinta, sexta e sétima casa

Do bairro Bom Jesus para as próximas casas e ruas sua memória vai ficando esparsa. De pouca coisa lembra.

- Depois da Bom Jesus, fomos para aquele apartamento perto do Bourbon. Não me lembro de muitas coisas. Tinha aquela vizinha que já se foi, Vó do Andrezinho.

Houve um esforço grandioso para que algo em suas lembranças fosse mexido. Da quinta casa com grande dificuldade, apenas há uma vaga lembrança.

- O apartamento era grande, com uma escada dentro que ia para uma sacada bem grande. Tinha janelas enormes e uma churrasqueira. Acho que foi onde eu pegava mais sol.

– Vó, a senhora lembra de mais alguma coisa ou de outro lugar? Ela mexe com a cabeça em sinal negativo. Deixo passar um tempo. Afinal são muitas casas e ruas para uma cabeça de noventa e seis anos de história.

-Minha filha, tem aquele outro apartamento de uma sacadinha bem pequena. Esse lembro que ficava no Protásio Alves. Teu avô ainda era vivo, né? O apartamento também era grande e eu me perdia dentro dele (risos)! Mas era muito bom, tinha um vasto corredor, duas salas e um quarto de empregada.

Das datas ela não se recorda. São poucos detalhes que sua memória pode nos contar. A deixo pensar mais um pouco. Preparo um café da tarde para nós.Este dia dezessete de março foi especial.

- Este apartamento onde moro agora. Faz tempo que estamos aqui. Logo em seguida que chegamos, o Ciro faleceu. Achei que fosse ficar triste, mas tinha a Vivi, bebezinha para me alegrar. Agora tá uma moça que já vai fazer treze anos. Gosto de estar aqui, mas também gosto de viajar pra praia e pro Rio. Quando vamos voltar pro Rio, hein?

Foi sua última frase, antes de cair num soninho sentada no sofá. Sob o meu olhar atento e minha escuta ativa para quase 100 anos de história, é através do resgate das casas e “suas” ruas que dona Inah, a Vó, lembra com momentos de lucidez e outros nem tanto de toda a sua vida.

--

--

Barbara Souza
Casa e Rua

Mãe em tempo integral, estudante nas horas vagas.