PERFIL

Resistência: substantivo feminino

Nicole Santos
Casa e Rua
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5 min readMar 28, 2023

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Suzana e Eurico no dia de seu casamento, em 1969 | Foto: arquivo pessoal

O semblante rígido é fruto de uma trajetória pautada pelo medo durante a vida clandestina. Uma vida cujo contexto é difícil de trazer na oralidade. Apesar disso, a luta pelo compromisso com a verdade se tornou parte fundamental de sua existência. Suzana Lisbôa, a “Su”, como é conhecida e chamada pelos mais próximos, dedicou grande parte da sua juventude a uma jornada perigosa. Nascida em Porto Alegre, vem de família judia. Sempre teve vontade de estudar no Colégio Israelita Brasileiro, mas não conseguia em função do valor elevado. Estava prestes a tentar uma bolsa, mas com o falecimento do pai, foi estudar no Colégio Júlio de Castilhos.

Um conjunto de traços podem defini-la, mas tem um que é o mais importante: a resistência. Resistência essa que a acompanha durante toda a sua vida. “Que país é esse que empresta sua bandeira para encobrir tanta infâmia e covardia?”, manifestava um informe no jornal que era distribuído entre os estudantes do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, centro da efervescência do movimento secundarista. Suzana ainda era estudante quando passou a integrar o movimento que tentou reabrir o Grêmio Estudantil do “Julinho”.

Sua rigidez só assusta, não afugenta. Quanto mais se conhece, mais se quer conhecer. A mulher que se esconde debaixo do olhar semicerrado e desconfiado transborda simpatia. Hoje, algumas décadas a separam daquela jovem destemida que enfrentou o mal tão de perto. Ressalta que, no momento, sua vida se tornou “limitada” depois pandemia, já que cuida da mãe, que logo deve completar 100 anos. Aproveita o tempo livre que sobra.

Mais tarde, passou a integrar importantes movimentos e manifestos em nome da justiça de transição no Brasil. Não se sabe até que ponto pode se considerar essa vida gratificante. Uma travessia entre o medo e a tormenta que é estar a todo o tempo na mira daqueles homens que usavam da farda para impor suas ordens. Uma vida que trouxe tantas dores. Mas a alma é preenchida pela gratidão que recebeu, já que carrega consigo o fato de ter ajudado a dissipar a angústia de tantas famílias.

Rompendo o silêncio
A casa de fachada amarela está coincidentemente relacionada com a trajetória de luta de Ico e Suzana. Desde o desaparecimento de seu marido e companheiro de luta contra a ditadura que se instalou no Brasil com o golpe de 1964, Ico, ela passou a ajudar familiares de mortos e desaparecidos. Militante da ALN, ela (sobre)viveu na clandestinidade entre 1969 e 1978, quando começou a participar dos movimentos de anistia.

Morto em 1972, o guerrilheiro da ALN foi um dos primeiros desaparecidos a ter o corpo encontrado. Apesar de ter sido apresentada a um laudo falso, Suzana sempre teve a certeza de que aquilo não procedia. Um tempo depois, viria a descobrir que o marido havia sido enterrado com nome falso em um cemitério localizado em Perus, São Paulo, em meio a outras 140 ossadas desconhecidas.

O tema ainda é delicado, áspero, difícil de se traduzir além do superficial. Os anos passam, mas ela segue na busca incessante por respostas para questões que atravessaram sua juventude. A ausência física que sente em sua vida deu espaço para muitos questionamentos, mas as memórias que se perpetuam cultivam o sentimento de nostalgia e saudade do tempo em que estiveram juntos.

Memória cedida

Em 2013, um ato simbólico entraria para a história de Porto Alegre. Na rua Santo Antônio, número 600, uma casa ampla e aparentemente simpática. Memória, verdade e justiça são algumas das palavras gravadas no muro da frente. O local fora usado — entre os anos de 1964 e 1966 — não apenas como um centro de detenção mas também como espaço de tortura, interrogatório e extermínio de pessoas. O primeiro centro clandestino de tortura que se tem conhecimento e registro.

Autoridades do Estado e do município na época garantiram que estariam empenhados em transformar o local em um centro em memória que levaria o nome do militante. “Ico” — como era chamado — foi uma das figuras mais importantes na luta pela preservação dos direitos humanos no Rio Grande do Sul.

Simbolicamente, aquele espaço de dor viria a se transformar em um memorial. O casarão da rua Santo Antônio, 600 passaria a ter um novo sentido ao se tornar o Centro de Memória Ico Lisbôa. A casa amarela calou e escondeu as maiores atrocidades que poderiam existir naquele contexto histórico.

O equipamento cultural seria simbólico, ressignificando e contribuindo para o resgate e a construção da memória, de forma que esses acontecimentos do regime autoritário jamais sejam esquecidos. No entanto, o projeto não teve seguimento. A casa não foi desapropriada e, apesar da disponibilidade das autoridades municipais para o ato, o governo do Estado não cumpriu com sua parte. Hoje, a casa, que foi vendida, conta com sucessivas tentativas de descaracterização.

“A única luta que se perde é a que se abandona”
Uma história é contada pelos personagens inseridos no contexto, ou por quem reflete suas consequências independente da temporalidade. Quando os livros ou as pessoas dão suas interpretações aos fatos eles estão recontando a história de acordo com sua noção de assimilação da realidade. Quando fatos concretos são negados ou há a tentativa de alterar a realidade, isso condena a sociedade a repetir seus desacertos.

No Brasil, temos nossa história ocultada por interesses de várias naturezas, hoje busca-se a ocultação de fatos que acabam sendo achatados e varridos para debaixo do tapete. Suzana Lisbôa é testemunha ocular de parte violenta desse período, e sua inspiração de vida é que os fatos sejam revelados. A busca não apenas pelos desaparecidos, mas também pelos culpados, é encarada como forma de honrar a luta de tantos que corajosamente se entregaram a essa causa democrática. Viúva de Luiz Eurico Tejera Lisboa, assassinado e enterrado com nome falso pela ditadura militar, sua história é singular, mas é nossa também.

Apesar de ter defendido a causa com unhas e dentes, guarda algumas mágoas dos governos democráticos posteriores em alguns períodos — apesar de não considerar que a dívida seja pessoal, especialmente pela recusa de algumas pessoas em “comprar a briga” dos familiares. Acredita que viraram as costas para a questão dos mortos e desaparecidos. Critica aqueles que quiseram evitar atritos. Ressalta que nenhuma das reivindicações foram atendidas pelos governos posteriores.

A carga emocional foi, involuntariamente, transferida para o filho. O menino cresceu vendo a mãe em compromissos em prol de justiça, ou frequentando cemitérios. Sua vida jamais retornou à normalidade. Acredita que a impunidade de hoje se perpetua sob os crimes do passado que não foram punidos. Mas não se deixa abater. A história de Suzana colide com a trajetória de muitas outras pessoas que lutaram pela reconstrução da democracia no país.

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Nicole Santos
Casa e Rua

Estudante de jornalismo pela UFRGS. Curiosa, inquieta e palestrinha.