PERFIL

Silêncio ensurdecedor

Marina Carvalho
Casa e Rua
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6 min readApr 4, 2023

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Estrela Rodrigues vive em uma casa cheia de telas. As janelas não necessitam delas, já que raramente estão abertas. A porta serve apenas para passagens rápidas, sem dar brecha para revelar o interior da sala escura. Só abre quando a professora de história aposentada sai para passear com Uli, sua cachorra, ou vagar pelo condomínio Cabeçudas, número 355, onde vive há 10 anos.

Nas primeiras horas do dia, os vizinhos já podem ouvir a voz grave e expansiva de Estrela, que conversa, briga e faz perguntas à Uli. “Minha filha, por que tu faz tanto drama quando eu saio? Só vou dar uma volta e já venho. Chega de mimimi” é o que pede a dona, enquanto a cachorra chora na área rodeada de telas do chão ao teto. Em dias agitados, é uma das últimas vizinhas a dormir e arranja papo com qualquer condômino que cruze sua varanda.

Se alguém passa por sua casa, ela comenta algo sobre o dia, sobre o tempo. Se é no portão do condomínio, onde faz posto perto da portaria, mesmo que não espere por ninguém nem um transporte, ela puxa papo sobre a demora dos ônibus. Ainda que raramente pegue o transporte público. Adverte quem passar com um celular na mão, afinal, lá fora tá um perigo danado, diz ela cheia de medo.

Estrela não espera uma conversa de elevador acontecer. É do tipo que nem se preocuparia se a companhia chegasse no seu andar desejado. Ela continuaria falando. Talvez porque falar é mais uma necessidade sua do que uma troca compartilhada. Quando alguém do condomínio de passos apressados não fica parado para dar continuidade à conversa, ela permanece olhando para as costas de quem se foi. E falando.

Se a filha vira assunto, as palavras são ditas com mais cuidado. Enche a boca para contar que é médica. Seu tempo vale mais que dinheiro. Talvez seja por isso que nunca visita Estrela. O orgulho da professora de História em formar a filha numa universidade federal quase esconde por completo a dor que transparece sua falta.

Durante a pandemia, Estrela virou uma mulher de poucas palavras. Tudo bem que os contatos com os vizinhos eram filtrados por panos. Demorou, no entanto, para contar que a filha médica trocou de posição. Estava internada, sendo cuidada pelas colegas de trabalho. A notícia trágica vinha acompanhada de outra novidade, que não teve oportunidade de espalhar pela vizinhança: a filha estava grávida.

A casa escura e pouco movimentada de Estrela ficou ainda mais silenciosa. Eram dias de dor e angústia. O sorriso gratuito da senhora grisalha já não se achava. A situação perdurou por alguns meses, até que a filha saísse do hospital, porém, sem ser mais como gestante. As complicações da doença levaram a criança, que não conheceu a casa da avó no condomínio Cabeçudas.

A filha é nada parecida com a mãe. Luana tem mechas roxas. Não precisa nem dizer qual seu estilo de música preferido. As camisetas de todas as bandas de rock existentes, que são a maioria do seu guarda-roupa, já denunciam. Luana veste predominantemente preto, com exceção dos cabelos. Estrela é grisalha. Diz que os cabelos embranqueceram cedo, depois de virar professora titular da sexta série. Luana ganha a mãe na altura. De tantos plantões e madrugadas viradas por conta dos estudos da residência, perde no peso. Estrela parece ter a estrutura de uma mulher que precisou abraçar o mundo com o peito. Sempre estufado, como quem diz ter orgulho da sua trajetória. Criou a filha sozinha desde os quatro anos.

Estrela mostra toda a sua garra de mulher viúva desde os 30 anos, quando seu marido, Seu Zé, faleceu de câncer de fígado. Logo essa enfermidade. Ela até brinca que foi de tanto pastel de carne e cerveja que eles tomavam toda sexta-feira à noite, enquanto o entregava uma porção recém-frita. “Pastel de carne com ovo e azeitona, só assim ele gostava. Só o meu”.

Seu Zé levava a sério o ritual. Toda sexta-feira, final de expediente, ela passava no supermercado a caminho da escola para a casa e comprava a massa fresca de pastel, metade da medida de carne moída de segunda e a outra metade de primeira (que, segundo ela, é o segredo para um pastel de carne bem suculento), e o temperinho verde. Seu Zé saía da firma, no caminho contrário, e passava em outro supermercado para comprar a cerveja dele e a dela. Para ele, uma Brahma. Para ela, sempre uma Original.

Não concordavam nos gostos das cervejas, mas tinham um consenso. “Se a gente não tomar nossa cevinha, aqueles pirralhos vão te matar de estresse. E se tu morrer, eu morro junto” era o que ele sempre dizia. Ela repete as palavras do falecido marido com um olhar vago, como se na sua cabeça estivesse ecoando o som da sua voz e pudesse sentir o cheiro dos pastéis recém-fritos. “Quem quase morreu foi eu”. Ela lacrimeja e troca de assunto.

“Eu sou uma mulher forte, sabe. Criei a Luana sozinha, claro, sozinha mesmo não. Ele me cuidava lá de cima. Sempre aparecia nos meus sonhos quando eu precisava de ajuda. Como no dia que ela passou na federal de Santa Maria e precisou ir. Nem quero lembrar… Mas o trabalho duro foi meu”. Ela relembra como quem mantém vivas todas as emoções que sentiu durante as últimas décadas.

Aponta para a cachorra e diz “agora minha filha é essa daqui. Me dá até mais trabalho”. Estrela ganhou a cachorra da filha, quando ela foi cursar medicina na Universidade Federal de Santa Maria. A cachorra tomou o lugar da filha. Todo dia, logo cedo, se ouvem no condomínio as conversas de Estrela com Uli. Às vezes, estão de bom humor. Em outras, o clima fica tenso.

Quando cansa da interação com o felino, desperta quase mais cedo que o Sol. Toma um café apressado, como quem tem compromisso marcado, e vai até a portaria. Sabe que, de segunda-feira à quinta-feira, quem está no posto é o Roberto Maria. No restante da semana, revezam Marquinhos e Alfeu. O Maria já virou seu confidente. O turno se encerra às sete da manhã. Ela sabe que são poucos minutos de conversa solta, desde que levanta, como quem caiu da cama, vai até a portaria, faz algum comentário banal e nada relevante sobre o dia ou a vizinhança, e começam uma conversa em que a maior parte do tempo quem comanda é ela.

Seu Maria não perde tempo. Às 6h50 já começa a recolher suas tralhas. Pote de marmita na geladeira, xícara de café na copa. “Vai falando, Dona Estrela, eu tô ouvindo a senhora daqui”, grita de dentro da mini cozinha escura à ela, que espera com a perna cruzada em formato de quatro, apoiada na porta da salinha.

Quando começa a se aproximar das sete horas em ponto, ela vai se achegando ao portão. Vai que pega alguma senhora ou estudante que esteja saindo cedo para o trabalho ou faculdade. Se é estudante, é seu dia de sorte. Falar sobre sua época de professora de História é sempre um gancho que rende alguns minutos de conversa, até que o ônibus chegue.

“Tá indo pra escola, meu filho?”. “Isso aí, tem que estudar mesmo, porque o estudo é o melhor caminho”, fala antes mesmo de receber uma resposta completa. Sua segunda sorte é quando pergunta qual era a matéria preferida, grande parte diz que História era uma delas. Quando não dizem, ela apela. “Sabe que na minha época as pessoas davam mais valor pra saber de onde vinham e quem veio antes delas. Agora, pra essa geração, o que mais importa é essa baboseira de internet. Nunca vi…” e essa é sua deixa para encerrar as interações humanas antes das oito da manhã e voltar para fazer as pazes com a Uli. Ela nunca reclama.

Enquanto retorna para a casa, anda como quem passeia por um museu. Olha com atenção a cada janela que abre com o despertar do dia. Se avista um vizinho abrindo a porta ou a persiana, já acena. Quando encontra algum atrasado indo em direção à garagem de carros, até puxa um assunto despretensioso. Uma desesperança de que dali sairia alguma conversa decente, mas não vai voltar à casa com a dúvida de quem nunca tentou.

Se durante todo o percurso, do portão às telas da sua varanda, ninguém a retém para mais um papo matinal, ela se conforma. “Pronto, minha filha, voltei. Tá mais calma agora? Pelo amor, nunca vi cachorra tão estressada. Vem, vamo entrar, que tá começando teu jornal preferido na TV”. Fecha a porta da casa escura e não se ouve mais a voz expansiva de Estrela até o final do dia. Até a próxima manhã.

Casa de Estrela | Foto: Marina Carvalho

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