CRÔNICA

Verde Musgo

Paulo Henrique Chalmes
Casa e Rua
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3 min readApr 4, 2023

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Maria Eva, a casa de vó e o neto. | Foto: Arquivo Pessoal

Casa de vó é o lugar onde se pode tudo. Não me entendam mal. É onde se pode comer picolé no inverno, esquecer a toalha em cima da cama, misturar manga com leite e caminhar de pés descalços sobre o piso frio. É um espaço de liberdade, nem sempre físico, que tento revisitar sempre que preciso buscar o “eu-criança” que faz parte de quem sou.

Mas por muito tempo, esse espaço foi físico. Tinha cor, se situava numa rua repleta de árvores com tamanha altura que pareciam me devorar junto ao sol e cravava sua morada em um bairro que carrega no nome uma certa metonímia: Tristeza. A cor do prédio era uma espécie de verde musgo desbotado. Exatamente da cor da tiara que a minha avó punha muito depressa na intenção de endireitar os fios sobressalentes para descer e esperar a perua da escola me devolver depois da aula.

Naquele apartamento pequeno de um dormitório, com a porta do elevador emperrada no quinto andar, foi onde minha avó me assistiu realizar muitas coisas pela primeira vez. A primeira vez que escrevi meu nome em uma atividade escolar. Quando aprendi a assobiar. Também quando, com a ajuda dela, decorei o alfabeto em alemão. No lar da minha avó, aprendi que sonhar era de graça.

Na simplicidade e ternura daquele verde musgo desbotado, entendi que o que importava mesmo esteve sempre ali, o tempo inteiro. No perfume das aventuras culinárias que presenciei, no percurso que fazíamos religiosamente todas as tardes de quinta-feira até o revisteiro para comprar o gibi da semana. Estava no esperar do pão quentinho do Seu Celsius na esquina da Dias de Carvalho com a Doutor Barcelos, na troca de conversa fiada — ainda que o meu repertório se limitasse a causos que pareceriam bobagem, não fosse a importância que ela dava a eles — voltando do Campinho na Armando Barbedo. Lembro das idas frequentes na encruzilhada da Teutônia com a General Rondon para aparar as pontas do grisalho dela e passar a “zero” quando eu ainda não usava os cachos. O sorvete era parada obrigatória na Coronel Massot, depois da caminhada escaldante de volta até o Bloco B.

Sem ela aqui, seja para dividir o banana split ou, agora, para orientar minhas confusões e meus questionamentos existenciais da vida adulta, tenho ainda mais certeza de que tudo que importava mesmo esteve sempre ali, o tempo inteiro. Na presença e no lugar. Um problema equacional que não coexiste sem a permanência de uma das incógnitas. Um compasso capenga, que perde a cadência quando alguém vai embora.

Agora, a Tristeza também é minha. Ganhamos até um pedaço dentro dela. Nossa fatia é na Pereira Neto, e tem como número 725. O apartamento no prédio verde musgo fica há uns 5 minutos caminhando de onde moramos. Mas isso pouco importa, a distância que realmente nos separa é um inventário.

Às vezes, quando saio para correr e no meu trajeto dirigindo até a faculdade, traço mentalmente as rotas que caminhávamos juntos. No mínimo, irônico. As árvores da Barcelos não me parecem mais tão altas e nem tenho a sensação de que meus 1,85 metros de altura seriam devorados facilmente. O revisteiro ainda pergunta por ela, mas não tive a coragem de confrontar a ingenuidade dele, sempre troco meias palavras e me retiro. Nunca mais comprei o pão do Seu Celsius, e nem comi banana split da Massot — mesmo porque, o espaço deu lugar a mais um desses arranha-céus parecido com o que moro.

Muitos diriam que o apartamento em que moramos, com a varanda enquadrando o final do dia rente ao Guaíba, é um lugar físico que conquistamos junto ao sol. Prontamente, minha mãe retrucaria sem rodeios que, na verdade, conquistamos um espaço, ainda que não concreto, junto à minha avó.

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