A ordem dos desejos é o caos

Gabrielle Dal Molin
Casa Não Mono
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4 min readDec 20, 2023

Esses dias assisti o filme japonês Drive My Car (2021), que já havia sido indicado há algum tempo pelos amigos cinéfilos. Nas três horas de duração, entre achar que ele se tratava de uma coisa e acabar descobrindo que era de outra, na verdade descobri que o filme era sobre várias coisas, e uma delas me despertou um pensamento sobre não monogamia. O filme não é sobre não monogamia, mas não é raro que filmes que não sejam falem de forma mais profunda sobre ela do que filmes que se pretendem ser.

Tentando dar o menos spoiler possível, existe um casal na história, que ao longo dos anos passa por situações difíceis como a morte da filha e uma doença degenerativa da visão do homem. Em dado momento, ele descobre que a mulher o traía, mantinha uma série de casos com homens às vezes mais novos, que ela conhecia no trabalho, pois trabalhava numa emissora de TV.

Ao falar sobre esses casos com um dos jovens que foi amante da mulher, ele ressalta que ela nunca deixou de amá-lo, nunca o amou menos, apesar das constantes traições, e que ele na verdade não entendia o porquê daquilo acontecer. O homem diz que parecia haver algo dentro dela, uma escuridão que ele nunca alcançara. O jovem então responde que, para conhecer o coração de alguém profundamente é preciso se aprofundar no próprio coração, que no fim das contas é só isso que dá pra fazer de fato.

Em outra cena, uma jovem com quem o homem vai desenvolvendo amizade e que havia escutado o diálogo anterior, questiona e ao mesmo tempo oferece a reflexão de que talvez não exista de fato aquela escuridão que ele nunca conheceu da mulher, e sim que poderia ser apenas um medo de saber que ela era só aquilo mesmo, com toda a contradição que podia existir. O que ela quis dizer foi, “talvez não exista nenhum motivo pelo qual ela, mesmo te amando, procura outros homens, ela só faz isso, essa é ela, não há nada de misterioso nisso”.

Essas duas cenas me fizeram pensar em várias coisas sobre a não monogamia.

Sobre como ele, mesmo não admitindo para ela que sabia dos casos e ela não admitindo que os tinha, acabava sendo verdadeiramente compreensivo com uma vivência não monogâmica da mulher. Era DADT*? Sim! Mas foi o que eles conseguiram rs. Quero dizer, ainda que não da maneira mais ética possível, existia entre eles um acordo de respeito às individualidades que em muitos arranjos monogâmicos não existe.

Por outro lado, uma vez admitindo isso, respeitando o desejo da mulher, compreendendo que o amor entre eles não havia esmorecido e vivenciando a possibilidade de múltiplos afetos na prática, ainda assim, ele se questionava sobre como isso precisava ter uma explicação exotérica à sua própria experiência e de certa forma até esotérica, considerando que ele localiza esse misterioso motivo numa profundeza da mulher que apenas ela e quem chegasse lá entenderiam.

E quantas vezes a gente que vive não monogamia não foi questionado dessa forma, quantas vezes nós mesmos nos questionamos dos motivos pelos quais amar uma pessoa não bastava? Quantas vezes nós respeitamos a multiplicidade de afetos do outro, mas não ficamos ali, cavucando pra entender o que havia de graça naquela terceira, quarta, quinta pessoa?

É interessante que as saídas dadas pelos dois jovens se complementam, porque ao mesmo tempo em que a gente só pode saber de fato da gente, e que isso demanda muita coragem pra se aprofundar internamente, também não é tão necessário que a gente questione tanto o desejo, seja o nosso, sejam os das pessoas com as quais nos relacionamos, porque ao fim e ao cabo, desejo não tem explicação. Nesse sentido, buscar racionalizar o porquê a pessoa é da forma que é faz bem menos sentido dentro de uma relação do que amá-la, acolher aquelas características que foram também os motivos pelos quais você se apaixonou e quis estar ali.

O homem do filme amava a mulher, admirava, construía sua vida com ela, não se sentia diminuído pelos outros homens, não havia o que mais ele pudesse saber dela, a não ser o que ele estava presenciando.

Claro que não estou falando aqui que mentira, enganação, falta de diálogo devem ser toleradas em nome do amor ou de qualquer tipo de relação, e muito menos estou passando pano para DADT*, eu realmente não acredito nele.

O que quero ressaltar aqui é que às vezes a gente está vivendo melhor na prática do que o está pensando na teoria. Que uma preocupação excessiva com esquadrinhar, desvendar, categorizar as pessoas com quem nos relacionamos, não nos leva a lugar nenhum, porque não existe nudez maior do que estar verdadeiramente aberto ao amor. Que a gente está na não monogamia porque sim, que gostamos de x pessoa porque sim, que não precisamos racionalizar tanto as nossas escolhas e nossos desejos.

Eu sou sempre a pessoa que vai falar sobre não monogamia como posicionamento político e não como identidade e de fato acredito nisso, mas tampouco acredito que a nossa ação política consiga ou mesmo deva ditar o que desejamos.

A ordem dos desejos é o caos e às vezes é melhor abraçá-lo do que tentar dizê-lo.

*DADT é abreviação de don’t ask don’t tell

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Publicação destinada a abordar temas da não monogamia relacionados a contextos de criação de filhes, coabitação, perspectivas coletivas e familiares

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Written by Gabrielle Dal Molin

escrevo, dou aula, faço bruxarias.

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