Amar o real

Gabrielle Dal Molin
Casa Não Mono
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4 min readFeb 28, 2023
Universum — C. Flammarion, Holzschnitt, Paris 1888, Kolorit : Heikenwaelder Hugo, Wien 1998 — Date 1998

Não quero escrever mais um texto sobre términos na NM, sobre escada rolante das relações, sobre “relações são mutáveis”. Eu vi pelo menos três postagens seguidas com esse teor em páginas não mono esses dias. Fora o tanto que já foi escrito e debatido sobre os dois primeiros temas. Então, não quero ficar repetindo, mas quero trazer um pouco de uma experiência recente.

Eu já escrevi repetidas vezes sobre não chegar a lugar nenhum com a não monogamia, sobre não ter um objetivo, sobre experimentar ser o verbo essencial pra nós. Nos dias em que escrevi isso, eu realmente acreditei nessa premissa, eu me sentia orientada por esses princípios na minha caminhada, eu via beleza nisso, eu sentia a mesma sensação de amplidão e de paixão pela liberdade de quando descobri a não monogamia na prática, há 10 anos.

Mas em outros tantos dias, eu caía em muitas armadilhas da monogamia, me via afundada em expectativas de que as qualidades de uma relação se repetissem na outra, nas cobranças decorrentes disso, nas frustrações que me levavam a esquecer do campo aberto dos afetos, ali sempre disponível. Nesses dias, eu cheguei a pensar então que os instrumentos e discursos de término monogâmicos seriam a saída pra que eu extirpasse aquelas dores e limpasse o terreno para um recomeço. Até que eu percebi que não existia término nem recomeço pra algo que eu nem tinha começado direito. Porque aquela relação era não mono, mas também não era.

Ter me dado conta de que eu precisava ser mais não mono naquela relação do que terminá-la foi uma constatação que me trouxe sentimentos dúbios, pois por um lado entendi como positiva a reflexão e a possibilidade de resolução de uma forma madura e de acordo com as minhas concepções políticas, mas por outro me senti culpada por não ter conseguido fazer isso antes.

Há 6 anos, eu me apaixonei demais pra conseguir abrir mão de toda a narrativa que eu construí em cima daquela pessoa e daquela relação. Por mais que eu tenha feito um mantra de que ela não precisava me dar tudo, e que por isso eu me mantinha aberta à outras relações mais profundas ou casuais, eu não consegui parar de almejar que ela me desse exatamente aquela frequência afetiva, aquelas demonstrações, aquele grau de comprometimento, aquela quantidade de tempo. E por uma série de razões ela não tinha tudo isso pra me dar, mas me dava outras coisas, em outros ritmos, de outras formas. Mas eu nunca me sentia plenamente satisfeita e em seguida percebia que plena satisfação não existe nunca, mas daí não conseguia sair desse looping de frustração e resignação.

Eu cheguei num desgaste muito grande, mas ao mesmo tempo eu não via o porquê de tirar a pessoa da minha vida, porque eu amo a pessoa, eu não sinto ódio dela, o sentimento não precisa sumir! Percebi que poderiam existir outros lugares dentro de mim, pra ela. Porque no fim das contas, o desgaste era meu comigo mesma, era eu o tempo todo lutando contra coisas que eu não tenho alcance, pra fazer valer meus desejos não realizados e perdendo de vista os que estavam se realizando.

Consegui ficar em paz comigo mesma, conversar com ela e aumentar essa paz, percebendo que hoje olho pra mim, pra ela e pra relação como deveria ter olhado desde sempre, como elas são. E não como eu gostaria que elas fossem num ideal romântico que tantas vezes beirou a monogamia.

Não há nada de ruim em amar o que é real.

Mas eu como uma pessoa legitimamente emocionada e insistente, sempre achei que a graça estava na luta pelo ideal. E pra mim parecia absurdo transformar uma relação depois de 6 anos, era como se eu estivesse desistindo do que eu sempre quis, como se eu estivesse admitindo a minha derrota. Até que eu percebi que eu já tinha mudado e queria outras coisas também. Na real a transformação já tinha sido minha e pra isso nunca é tempo demais. Até o fim de nossas vidas, se tudo der certo, vamos estar em movimento, reflexão e transformação interna.

Compreendo só hoje que a não monogamia não se trata de um constructo baseado em grandes ideias complexas e sim na percepção e receptividade da realidade pura. É saber se ver e ver o outro, é saber lidar com o que se é e com o que ele é, despido do que você quer ser e quer que ele seja. É saber viver cada encontro, cada afeto, cada relação como ela é. No presente.

Se esse texto fez sentido pra você até aqui, eu quero te dizer que a gente precisa se dar o tempo que for pra ser quem a gente é e pra construir o que a gente acredita. E a gente pode sempre mudar de ideia, mudar de rota, descobrir que não quer mais algo que queria. A gente precisa amar as nossas contradições, os nossos caminhos, erros e acertos. Porque só sendo humano suficiente é que poderemos viver no mundo que queremos.

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Publicação destinada a abordar temas da não monogamia relacionados a contextos de criação de filhes, coabitação, perspectivas coletivas e familiares

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Written by Gabrielle Dal Molin

escrevo, dou aula, faço bruxarias.

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