Caminho das pedras

Quando as restrições podem ser legítimas?

Gabrielle Dal Molin
Casa Não Mono
5 min readJul 10, 2022

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É comum ouvir relatos de gente que diz que estava vivendo relações não mono e por algum motivo decidiu “fechar”, ao menos por um tempo.

Eu nem quero fazer aqui a discussão de “abrir” e “fechar”, que talvez esteja encerrada em termos muito monogâmicos, e nem problematizar pela vigésima vez o conceito de relação aberta (procure em textos anteriores rs). Quero falar sobre os motivos, as justificativas que fazem as pessoas tomarem alguma atitude em direção a restrições dentro da não monogamia. E também sobre se é possível, uma vez entendendo o princípio da não monogamia, voltar atrás.

Motivos de ordem prática

Existem aquelas justificativas que estão dentro das áreas da saúde, por exemplo. As que já ouvi: gravidez, puerpério, doenças psíquicas, noia com IST e pandemia.

Muitas mulheres que gestaram, pariram, amamentaram, que estavam passando pelas loucuras psicossomáticas do puerpério, decidiram que não tinham condições de lidar com metamores, com ENR, com as inseguranças que outros vínculos seus ou de parcerias traziam e acabaram permanecendo apenas com uma parceria, ou as que estavam mais bem estabelecidas, e da mesma forma, pediam que suas parcerias fizessem o mesmo.

Durante a minha gestação, você leitor e leitora que me acompanha desde o início, sabe que eu fui uma dessas. Relutei em pedir que minhas duas parcerias segurassem um pouco a onda, porque eu estava muito sensível, vulnerável e não estava dando conta de lidar com, de um lado, a busca por novas relações da parceira e a abertura para relações passadas querendo flashback do parceiro. Nesse texto, eu relato um pouco da minha confusão nessa época, entendendo que eu tinha direito de pedir, mas também me culpando, como se eu estivesse sendo uma farsa NM.

Esse período da vida de quem gesta é muito complexo, desafiador e eu considero bastante legítimo que a gente recorra a certas restrições, ainda que eu entenda que tudo isso deva ser feito com muita consciência dos reais incômodos, com respeito aos sentimentos de todos os envolvidos e sobretudo com a aceitação de que você pode simplesmente receber um não e que isso não necessariamente vai ser falta de responsabilidade afetiva do outro.

O caso das doenças psíquicas (principalmente quando já estão diagnosticadas e em tratamento), as quais podem levar a um cenário de grande insegurança e bad generalizada, também considero que deva ser compreendido e negociado de forma a respeitar as demandas de todos.

Já os medos de IST e noias da pandemia, claro, são legítimos e escolhas pessoais que podem ser combinadas entre todos, mas é bem importante que na medida do possível as pessoas trabalhem terapeuticamente essas questões, porque viver é perigoso, se relacionar é sempre um risco e a hipocondria pode dividir um limite tênue com a racionalidade.

Sobre a pandemia especificamente, no início de 2020, eu escrevi textos que geraram polêmica, pois defendi que cada pessoa tinha autonomia pra gerir seus riscos, pois muitas vezes, ver uma pessoa que você se relacionava e que não morava com você, poderia ser também uma questão de saúde mental, entre outras coisas.

Resquícios da monogamia não trabalhados

“Problemas afetivos”, ciúmes, insegurança, carência, controle, são alguns que a gente vê também como motivos para restrições. Nem precisamos falar muito sobre isso, porque são coisas que claramente todo mundo passa, mas que quando a gente está firme no propósito da não monogamia, a gente vai ter que ter coragem pra mexer, enfrentar e superar na medida do possível. Significa que não vai nunca mais ficar insegura e sentir ciúme? Não, mas significa que não vai mais pedir ou impor comportamentos a partir disso.

Dificuldades e desafios todo mundo vai ter, mas se a cada vez que a gente passar por eles a gente desistir, talvez signifique que você ainda não tenha aceitado a não monogamia no seu coração kkkk brinks

Talvez signifique que em termos políticos, a não monogamia não tenha se tornado um verdadeiro norte para suas relações, não só as que envolvem sexo, porque de fato, uma vez que a gente entende a não monogamia como uma postura política, é bem mais difícil a gente balançar diante dos problemas cotidianos que a prática vai trazer.

E é a partir disso que eu chego na segunda parte do texto que é: não tem como você ser ex-não monogâmica se você de fato foi não monogâmica.

“Ah mas eu não estou ficando com ninguém a mais do que a parceria que eu já tenho e nem ela está”. Isso não significa nada, pois não é a quantidade, é a dinâmica. Não é só a prática afetivo-sexual no presente, mas também e sobretudo a adesão a uma forma de pensar aberta as possibilidades de construção e manutenção da autonomia de todas as pessoas.

As vezes você acaba ficando um tempo apenas com uma parceria afetivo-sexual por falta de tempo de conhecer outras pessoas, por falta de interesse, por falta de gente interessante e disposta, por n motivos. Já falei em outros textos que nesses quase dez anos que vivo NM, durante alguns anos não estive com mais de uma pessoa, e tudo bem, eu não tinha deixado de ter esse norte pra minha vida.

Tendo a achar que quem fala que “tentou a NM e não deu certo” e depois voltou pra relacionamentos super fechadinhos, na verdade não conseguiu trabalhar tudo que precisava. Nem vou dizer que não estava pronto, porque ninguém está.

A gente vive numa sociedade estruturada na monogamia, no patriarcado, na heteronormatividade, a gente nunca está pronta pra quebrar esses padrões. Não existem pessoas evoluídas o suficiente para serem NM. Existe coragem, postura política, contextos favoráveis, experimentação.

Acredito que é possível, no entanto, como elenquei nesse texto, existirem motivos para que durante um tempo determinado, algumas restrições sejam negociadas, mas isso é diferente de voltar à monogamia. E elas só vão estar dentro de limites éticos se forem conversadas considerando todas as pessoas envolvidas e se não partirem de manipulações emocionais. É preciso bastante honestidade.

Com exceção da época da gestação, eu não tive mais motivos para ir em direção às restrições de nenhum tipo, nem as pessoas que eu me relaciono. Não posso dizer que aceitei super bem não ter a minha necessidade atendida, nem que isso não tenha deixado cicatrizes que vira e mexe ainda doem. Não somos autômatos que vivem uma programação não monogâmica ideal, a gente sofre, erra muito, se depara com o pior de si e dos outros. Mas assim como eu encampo outras posições políticas não confortáveis, defendo que a não monogamia é o melhor caminho, mas como todo caminho, ele tem pedras.

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