Minha filha não é minha

Olhando com olhos não monogâmicos para as relações de parentalidade

Gabrielle Dal Molin
Casa Não Mono
4 min readApr 13, 2022

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Saímos esses dias, companheira, companheiro, eu e minha filha. Era uma exposição de arte de amigos, num sebo de um amigo, várias pessoas que conhecíamos, um ambiente confortável.

Minha filha gosta muito de dançar e em determinado momento ela estava dançando e sendo cuidada somente pela companheira. O companheiro estava num papo animado com um amigo e eu nem sei onde eu estava. Chegou uma pessoa que não nos conhecia e perguntou para a companheira “ela é sua?”, ao que foi respondida que não, que era minha (o que talvez não fizesse diferença pra ela, pois não sabia quem era eu).

Quando a companheira veio nos contar, já em casa, sobre o ocorrido, fiquei pensando sobre essa frase. “ELA É SUA”. E hoje resolvi escrever esse texto para falar sobre como a não monogamia com filhos pode nos ajudar a pensar sobre as posses, também dos filhos e não só das pessoas com as quais a gente se relaciona afetivo-sexualmente.

Geralmente as pessoas tem essa necessidade de certificação de laços consanguíneos entre crianças e adultos, saber exatamente quem é o pai e a mãe, atribuir características físicas herdadas entre outras coisas que fazem parte da heteronormatividade. Eu tenho uma história engraçada a respeito disso, sobre quando algumas pessoas diziam pra minha mãe que eu tinha puxado alguma coisa do meu padrasto, e ela confirmava, não desmentia por preguiça de explicar. Mesma preguiça que eu tinha quando alguma criança dizia que ele era meu pai, eu dizia sim, porque nos anos 90, a família tradicional brasileira ainda fingia que não estava acostumada com divórcios.

Esse costume de vasculhar semelhanças e exigir que sempre haja um pai e uma mãe para cada criança, é o que cria essa ideia de que as crianças SÃO DE DOIS adultos. Elas são posse inalienável dessas pessoas a que chamamos de pais e que qualquer pessoa que esteja desempenhando cuidados e tendo uma relação de afeto com a criança, está um degrau abaixo, não tem posse e principalmente deveres próprios desse vínculo.

Na não monogamia a gente tem que trabalhar a nossa ideia de que alguém é nosso, de que nós temos direitos sobre a vontade dessa pessoa, de que ela existe para suprir nossas necessidades. Isso deve se estender às crianças: quando temos filhos e mais de um vínculo afetivo, é importante que essas pessoas sejam presentes na vida da criança e que todas ajam em prol da criança, que não haja diferença entre quem pariu, quem registrou, quem paga os boletos, quem coloca pra dormir.

Eu comecei o texto falando “minha filha”, porque de fato esse pronome possessivo é o que a gente usa pra designar relações no geral, família, amigos, amores. E talvez esse seja um problema daqueles de como a língua institui comportamentos, que jamais será resolvido. E eu também acho que, no caso de filhos crianças pode existir algo que as pessoas que pariram, por exemplo, possa chamar de seu. Mas, a gente pode sempre problematizar o quanto dá, desconstruir até certo ponto, transformar até onde a gente consegue.

A gente consegue abrir mão da posse sobre nossos filhos e estender esse cuidado para uma comunidade maior. Não temos comunidade disponível, mas temos mais uma ou outra pessoa? Pronto, essas pessoas já podem estar no rol de adultos que a criança vai ter como base, sem importar de quem ela veio. Em alguma medida, isso sempre aconteceu, como eu disse no primeiro texto que escrevi aqui, lá em 2019, mas a gente tem que encampar isso como uma escolha política, para além da necessidade.

Escolher criar os filhos com várias pessoas e não deixar com outra pessoa quando precisa. Naturalizar que as crianças não são nossas e que podem e devem estar com outras pessoas em quem confiarmos, mesmo que a gente esteja desocupada. A sociedade precisa entender que a mãe não precisa de rede de apoio só quando está cansada e que a rede de apoio, como também já propus aqui, deve ser feita da rede de afetos (não só da vó e da escola).

Eu gostaria que as pessoas perdessem a necessidade de perguntar de quem são aquelas crianças, como se não fosse possível que uma criança esteja dançando com um adulto que não seja sua mãe ou pai. Como mãe, entendo que é fundamental que a gente observe com atenção as relações de todos os adultos com as crianças, para evitar violências e abusos, mas isso não tem necessariamente a ver com adultos estranhos, pois a maioria desses comportamentos nocivos acontece dentro de casa.

Minha filha continua sendo minha filha, ela saiu de dentro de mim e compartilhamos sangue, leite, suor e lágrimas. Mas ela também é de todo mundo que a ama, incluindo não só a companheira, mas as amigas da mãe, que participam efetivamente da vida dela, além do pai, das avós, avô. Deixei as relações consanguíneas por último, porque gene não garante amor, escolha sim.

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