Não monogamia é sobre amor entre mulheres

Safismo histórico e conceitos contemporâneos

Gabrielle Dal Molin
Casa Não Mono
4 min readAug 22, 2023

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Alguns anos atrás eu vi o filme Vita and Virginia (2018), que conta um pouco da relação entre as duas escritoras inglesas, Vita Sackville-West e Virginia Woolf, entre as décadas de 20 e 40. Eu fiquei profundamente tocada pela história, depois do filme fui ler sobre, isso me levou a parar de postergar e ler dois livros da Woolf e me tornar uma grande admiradora dela como pessoa, como mulher. Há poucos meses vi um monólogo da Claudia Abreu, belíssimo e comovente; Virgínia me fez chorar durante quase todo o espetáculo. Na época em que li o primeiro livro, Mrs Dalloway, eu quase comecei a ler Orlando no Kindle na sequência, livro que Woolf escreveu para/sobre Vita. Achei estranho, estava cansada, deixei pra lá.

Mês passado vi no twitter que tinha sido lançado o livro Virginia Woolf & Vita Sackville-West: cartas de amor, pela primeira vez traduzido para o português. E com prefácio da Alison Beschdel. Comprei automaticamente. Li avidamente, me emocionei e algumas vezes tive que parar, me sentindo quase sem ar, por lembranças e sentimentos provocados pela correspondência entre elas, eu estando num contexto de término.

(OFF: Escrevi sobre o que estava lendo, mandei pra minha ex e ela, por um mágico alinhamento que só os dramas sáficos proporcionam, estava assistindo o filme, naquela mesma hora).

Uma das coisas que mais me impressionou no filme e na leitura posterior dos fatos, era a vivência de relações não monogâmicas (ainda que não assim denominadas) em plenos 1920, 1930, por duas mulheres sáficas e dois homens, provavelmente não heterossexuais.

Não vou me alongar nos detalhes, mas é importante saber que apesar de serem casadas com esses homens, que ao que tudo indica, também se relacionavam com outras pessoas, Vita teve várias namoradas e a situação era razoavelmente escancarada, a ponto do filme citado no início do texto ter sido baseado no livro escrito por um dos filhos de Vita, Retratos de um casamento. Virginia, apesar de não dizer claramente sobre romances, cita mulheres que eram suas admiradoras e com quem constantemente se encontrava.

É claro que elas eram mulheres brancas europeias, Vita era rica, Virginia se tornou uma reconhecida intelectual e escritora, o marido de Vita era diplomata, existiam condições que favoreciam viverem experiências com alguma liberdade. Mas ainda assim, eram mulheres em meados do século XX, quando se falava no máximo em safismo como atração erótica/prática sexual, mas em amizade para as relações afetivas entre mulheres. E conceitos como “não monogamia”, “poliamor”, “anarquia relacional”, estavam ainda muito distantes de serem inventados, embora anarquistas já imaginavam e tentavam colocar em prática o amor livre.

Nas cartas entre as escritoras, apesar de constantemente dizerem que se amavam, nunca se referiam àquela relação como um namoro, uma relação romântica. Virginia nunca teve relações sexuais com seu marido Leonard; Vita teve filhos com Harold, mas falava abertamente sobre seu amor por Virginia e outras paixões; todos conviviam; Virginia escreveu Orlando mudando o sexo da personagem que seria Vita, em 1928!

(OFF: comprei Orlando semana passada e vou ler dessa vez)

A forma como elas viveram seus amores, suas paixões e sua sexualidade naquela época é notável, considerando que até hoje nós temos que explicar, as vezes de forma cansativa o que significa não ser monogâmico.

Não fica claro, nas cartas e nos poucos trechos de diários delas, presentes no livro, se elas tinham interações sexuais e essa dúvida perpassou minha leitura até o fim. Porque em alguns trechos Vita diz que a ama, mas que não quer transar com ela, em outros, ambas se referem à encontros que de forma indireta podem estar falando de sexo. Lembrei dos diários codificados de Anne Lister, contando sobre suas experiências sexuais e românticas lésbicas e pensei se não era o caso de Vita, não deixar tão claro por medo de conter ali um desvio da norma registrado.

Mas daí eu comecei a ficar incomodada com a minha dúvida, por que afinal, qual seria o problema se as duas tivessem tido uma relação íntima que durou 20 anos, porém sem sexo?

As experiências não monogâmicas de Vita e Virginia sempre me chamaram muita atenção, justamente por me identificar, principalmente com Vita: mulher que podemos considerar dentro da bissexualidade, mãe, numa relação com o pai de seus filhos. E justamente por esse traço não mono é que a relação delas era incomum, para além de sáfica, não era exclusiva, não tinha as características das relações como foi o casamento de Anne Lister e Ann Walker, por exemplo. Sendo assim, o que menos importava era se as duas transavam e sim as barreiras que elas quebravam naquele momento em viver, não só diversas formas de amor por diversas pessoas, mas de não se bastarem dentro de casamentos com homens, dentro da maternidade, dentro do que se esperava em um patriarcado francamente estabelecido. As barreiras que se quebravam em falar de amor entre mulheres, não o amor fraterno, não o amor de mãe e filha, mas o amor que surge de relações conscientemente escolhidas para serem vividas.

Duas escritoras que se admiravam, se apoiavam, se inspiravam, se publicavam, se amavam acima de qualquer convenção. Não há nada que possamos aprender mais com elas sobre feminismo e não monogamia, mesmo elas nem sabendo estarem deixando essa lição.

Não monogamia é sobre sexo, mas pode não ser. Não monogamia é sobre amor, mas pode não ser. Não monogamia é sobre casamento, mas pode não ser. Não monogamia é sobre casa, filhos e cachorros, mas pode não ser. Não monogamia é também sobre amizade, admiração, apoio mútuo, inspiração artística, ideias coletivas, práticas políticas, solidariedade de classe, etnia, gênero.

Não monogamia é sobre amor entre mulheres, as que transam e as que não, as que se relacionam diretamente, as que são metamores, as que cuidam das crianças umas das outras, as que cuidam umas das outras, seja de que forma for.

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