Não Monogamia é sobre os outros
Nessas férias, pela primeira vez, durante uma semana, estivemos na casa da minha mãe, eu, meus dois afetos e minha filha. Minha mãe já a havia conhecido brevemente, enquanto que já convive há alguns anos com ele, pois moramos juntos. Mas dessa vez, seria uma oportunidade tanto para elas se conhecerem melhor, quanto para conhecer alguns amigos, minha cidade e sobretudo, para que pudéssemos passar alguns dias todos juntos, algo que geralmente não é possível por conta da rotina de trabalho dela e dos cuidados com a mãe.
Como toda primeira vez, existe um grau de complexidade que acredito que vá se diluindo com o tempo e o costume. E isso eu falo até de relações mono — conhecer família, amigos, estar diante da história de infância e adolescência do outro — é sempre muita coisa. Somar-se a isso três pessoas que se relacionam afetivamente e mais uma criança que é entendida pela sociedade como responsabilidade só de quem é pai e mãe biológico, faz com que o complexo se aprofunde. Diante disso, eu tentei compreender as nuances “naturais” da situação, mas também refleti bastante sobre formas de superar algumas questões. Trarei dois exemplos e depois os pensamentos decorrentes deles.
Exemplo 1
Houve um mal entendido fonético no qual minha mãe entendeu que minha filha estava chamando a companheira de “titia”, pois do jeito que a criança falava parecia isso, mas era a tentativa de reproduzir o som do apelido dela. E a partir disso, começou a reforçar o “titia” causando incômodo a mim e a “Titi”. Depois de alguns dias eu conversei com a minha mãe, de forma bem descontraída, para explicar que não era titia e que nós ensinávamos a criança a chamá-la pelo apelido pelo qual chamamos, e ela entendeu. Para nós três parece óbvio que jamais nos refereríamos ela como uma tia e que ela ainda é muito pequena para nomear com algo que não seja o que nós nomeamos. Entendemos que a relação delas, com o tempo, vai dizer o que vai ser, partindo dos desejos de ambas e não de alguma estrutura de parentesco previamente pensada.
Exemplo 2
Quando falava com uma pessoa que tinha estado conosco, ela disse muito delicadamente e sem julgamentos, que enxergava uma energia de casal quando eu estava só com ela, mas que quando ele estava junto, essa energia se dissipava um pouco, pelo fato de eu e ele sermos lidos automaticamente como o PAI™ e a MÃE™, ou seja, porque existe um pai e a estrutura heteronormativa se sobrepõe ao fato de que eu sou uma mulher bissexual e não mono, coisa que não se costuma ver em FAMÍLIAS™. Ainda que a pessoa achasse muito legal a configuração e visse uma integração real dos três com a criança, a visão da família tradicional resiste.
Esses dois exemplos trazem a tona o nosso parco vocabulário e nossa estreita cosmovisão quando se tratam de relações afetivo-sexuais e principalmente parentais.
Por que essa terceira, quarta, quinta pessoa na vida de uma criança, precisa tanto ser nomeada? Por que continuamos buscando dentro das categorias de parentesco que já dispomos um lugar para enquadrá-la? Por que, para além de tentar criar outras categorias, nós não abrimos mão da própria necessidade de categorizar esse vínculo afetivo real que existe sem precisar passar pelas estruturas normativas? Por que mesmo quando somos parte da população LGBTQIAP ainda vemos família estruturada em torno do casal homem e mulher, mesmo que se saiba que a mulher é bissexual, que existe outra mulher ali, participando da vida, dividindo cuidados com a criança?
Da mesma forma, por que ainda procuramos energia de casal ou qualquer pista de relações monogâmicas em relações entre três pessoas?
Por que comparamos o que existe entre um e outro, outro e um, outro e outro, não descentralizamos o olhar sobre a pessoa que entendemos ocupar o “elo entre os três”, por que não abrimos mão de pensar as relações de forma fixa e olhar sua dinâmica, movimento, percurso?
Isso me levou a refletir sobre o quanto se colocar como uma família NM exige a mesma coragem e enfrentamento de se colocar como pessoa LGBTQIAP.
A sociedade, materializada em nossos círculos familiares e de amizades, empurra as pessoas que desviam da norma de alguma forma, para que prendam a se posicionar, a falar e viver a sua verdade e esse é um processo que nunca é fácil. E nem todo mundo consegue se impor e arrancar o respeito que merece, cada pessoa tem seu tempo e suas condições emocionais pra isso. Nesse sentido, se colocar perante a sociedade que ainda esbarra na falta de repertório para lidar com a não monogamia, sobretudo quando envolve filhos, é uma tarefa que nós temos que saber que precisará ser feita, de uma forma ou de outra, agora ou depois.
Já falei em alguns textos sobre a aproximação das identidades LGBTQIAP com a não monogamia, enquanto possível identidade, mas no sentido de mostrar os limites desse pensamento. E cada vez mais afirmo minha posição de que não é a identidade que nos aproxima e sim a necessidade da nossa ação política. Assim como existem pessoas não cishetero que só buscam o assimilacionismo, também existe muita gente em relações não monogâmicas que não pensam no conteúdo político, apenas vivem uma monogamia com mais pessoas.
Então, essa temporada em meio às raízes, tendo que lidar mais do que nunca com todas as coisas boas e ruins de estar com pessoas que fazem parte da minha vida há muito tempo, agora sendo mãe, o que eu tiro de lição pra mim e que compartilho aqui com as leitoras e leitores é:
A não monogamia não exige coragem porque a gente vai ter que lidar com a nossa insegurança, ciúme, posse em relação a quem a gente ama/transa/divide os boleto, mas porque a gente vai ter que lidar com todo mundo com quem a gente não faz nada disso. Porque são eles que metrificam nossas relações, porque o sistema inventou a monogamia como norma, porque a gente só é não mono porque todo o resto é mono.
A verdadeira aceitação e naturalização de relações não hetero e não mono não está dada e talvez nunca esteja, porém nós que somos não mono e/ou não hetero continuaremos sendo quem somos e necessitando de espaço para vivermos bem. Mas quem terá que construi-lo somos nós mesmos.
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