A história por trás do meu livro-reportagem

Letícia Oliveira
Casal Torcedor
Published in
9 min readMay 23, 2020
A obra trata da elitização do futebol brasileiro sob a ótica de palmeirenses e juventinos (Foto: Letícia Oliveira)

Ontem, lá no Instagram, eu postei essa foto aí pra mostrar uma das coisas que eu mais me orgulho de ter feito: um livro-reportagem de futebol. Muita gente curtiu a ideia e teve até quem mandou mensagem perguntando como poderia adquirir um exemplar — fiquei extremamente lisonjeada com o interesse!

Hoje, então, resolvi contar um pouquinho mais pra vocês sobre o meu livro: como surgiu a ideia, como foi produzi-lo e, principalmente, porque ele é motivo de tanto orgulho pra mim. Espero que vocês gostem 😉

Por que eu fiz jornalismo?

Antes de falar sobre o livro em si, acho importante voltar no tempo e contar porque eu resolvi ser jornalista. No fim, vocês vão ver que toda a história se encaixa, e o livro é a materialização de um sonho que foi sendo construído ano a ano, começando lá em 2009 e sendo concluído só em 2015.

Eu cursava o Ensino Médio e, como todo estudante nesse período, estava naquela aflição para decidir o que faria da vida. Eu já era muito envolvida com futebol — inclusive fazia parte de torcida organizada, mesmo sendo menor de idade e morando no interior.

Estudava de manhã e, quando chegava em casa, minha mãe já dava adeus à nossa única televisão: eu começava pelo Jogo Aberto, da Band, ia pro Globo Esporte, depois ESPN, SporTV… e ficava nessa por um bom tempo. Além de ver futebol na TV, comprava algumas edições do jornal LANCE! e da Revista Placar. Também mantinha um blog sobre meu time — na época, média de 10 mil visualizações mensais — e fazia plantão esportivo numa webrádio nos jogos de quarta e quinta à noite e aos finais de semana, tudo pelo Skype.

Sim, isso tudo com 15, 16 anos… E o mais engraçado disso: na época, eu não fazia a MENOR ideia que o jornalismo era o caminho mais óbvio pra mim. Eu pensei em Fisioterapia, Ciências Sociais… Jornalismo? Nunca. Minha mãe foi quem abriu meus olhos: “Olha tudo o que você faz! Você vê o mesmo lance em trocentos canais diferentes, escreve de futebol, só fala de futebol, só tem coisa de futebol… Você tem que ser jornalista!”.

É, meus caros… As mães sempre têm razão. 🤷‍♀️

O pontapé inicial

No meu colégio, tinha uma disciplina chamada PTC — Projeto Técnico-Científico. Basicamente, a ideia era fazer com que os alunos tivessem um primeiro contato com a produção de um artigo científico, nos mesmos moldes de um TCC de graduação, por exemplo. Eu e mais duas amigas formamos o trio que optou pelo tema “fanatismo”.

Uma delas já tinha uma consciência política bem acima da média, e gostava do tema. Abordou o extremismo nos principais regimes políticos como ditadura, nazismo, fascismo etc. A outra, evangélica, se propôs a falar de fanatismo religioso e dos vários registros históricos em que a fé se sobrepôs ao bom senso e se tornou doentia.

E eu, adivinhem só? É claro que eu quis falar de fanatismo esportivo. Me propus a fazer uma linha do tempo mesmo, desde o surgimento nos hooligans na Inglaterra, passando pelos ultras italianos, chegando nas barra bravas sulamericanas e, por fim, as torcidas organizadas brasileiras.

Inclusive, quando eu disse um pouco mais acima que cogitei fazer faculdade de Ciências Sociais, foi justamente por conta da produção desse projeto. Na época, conheci estudos do sociólogo Mauricio Murad (guardem esse nome!), e coloquei na cabeça que eu queria ser que nem ele.

Mas enfim, voltando a falar do artigo e indo direto ao ponto crucial dessa história toda: falar de torcida, pra mim, não foi só pela temática do fanatismo como pano de fundo da pesquisa. Eu já tinha uma vontade absurda de dar voz ao torcedor, o verdadeiro protagonista desse espetáculo chamado futebol.

Sempre me incomodou as tomadas de decisão que influenciavam diretamente as torcidas, mas elas nunca eram ouvidas. No caso das organizadas, é claro, tem toda uma discussão sobre a marginalização desses grupos, mas se a gente for pensar, mesmo o torcedor comum não é consultado com tanta frequência e mesmo grau de importância pelos dirigentes de clube e imprensa.

Eu quis fazer algo diferente e, na medida do possível, dentro das minhas limitações sendo uma simples aluna do colegial, fiz. Mas eu queria fazer mais.

Produzindo um livro-reportagem

Corta pra 2015. Último ano de curso na Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas. Eu fazia dois estágios: um da EPTV, emissora afiliada da TV Globo (mesma empresa que eu trabalho hoje como jornalista contratada) e no Vôlei Brasil Kirin (atual Vôlei Renata), time masculino de Campinas, que é da elite do voleibol brasileiro, onde eu tive a honra de trabalhar ao lado de campeões olímpicos como Maurício Lima e André Heller.

Além de me desdobrar pra dar conta dos estágios, eu precisava focar no TCC. Tive muita sorte em poder contar com a ajuda do meu querido mestre Luiz Roberto Saviani Rey — ou apenas Savi — como orientador do meu projeto.

Juntos, decidimos que o melhor formato seria o de um livro-reportagem. Sempre gostei de escrever, e a ideia de tocar essa produção de forma individual me agradava porque, mesmo ainda sem ter o recorte do tema definido, de uma coisa eu tinha certeza: aquela minha vontade de dar voz às torcidas, que surgiu lá nos tempos de escola, iria prevalecer.

Definindo o tema

No pós-Copa, as discussões sobre os estádios que seriam verdadeiros “elefantes brancos” se tornaram ainda mais efervescentes. O preço do ingresso subiu em larga escala, os clubes adaptaram seus planos de sócio-torcedor e um novo público tomava conta das arenas de futebol. Esse foi o gancho do meu trabalho: a elitização do futebol brasileiro.

A amplitude do tema me daria a possibilidade de analisar de várias formas diferentes, mas o viés escolhido, claro, foi a visão do torcedor sobre essas mudanças todas que estavam acontecendo.

Ao todo, mais de 50 personagens foram citados no “Arquibancada — Território de Espetáculo e Consumo”. Para atender também as exigências acadêmicas, que precisam de um recorte muito específico, optei por analisar esse tema sob a ótica de palmeirenses e juventinos.

Mas por que Palmeiras e Juventus? Bom, o Palmeiras é um dos times que passaram por esse processo de elitização e profundas transformações dentro e fora de campo. Já o Juventus representa toda a mística do “ódio eterno ao futebol moderno”. Era o contraste ideal para apresentar esses dois extremos: de um lado, o time milionário que ostenta a arena mais moderna da América Latina; do outro, o Moleque Travesso mandando seus jogos na tradicional Rua Javari e disputando campeonatos de divisões inferiores, sem nenhum estrelismo, mas com muita paixão.

Realizando um sonho antigo

Ah, e vocês se lembram do Mauricio Murad, que eu citei ali em cima? Pois é.

O sociólogo carioca não é palmeirense, nem juventino, mas ele foi uma das poucas fontes consideradas “oficiais” que eu topei incluir no livro. Claro, primeiramente pela importância que tem a fala dele, por ser referência quando o assunto é violência no futebol… Mas eu confesso que me dei de presente esse luxo também durante a produção do livro-reportagem.

Fiz das tripas coração para conseguir o contato, torci muito pra que ele me respondesse e ele foi super gentil ao me receber em seu apartamento, no Rio de Janeiro. De quebra, ainda ganhei dois presentes: um autógrafo em um livro dele que eu já tinha (e levei propositalmente pra isso), e o exemplar também autografado de uma outra obra dele.

Presentes do sociólogo Mauricio Murad (Foto: Letícia Oliveira)

Sobre o “Arquibancada — Território de Espetáculo e Consumo”

Dividido em 10 capítulos, a obra tem apenas 115 páginas e pode ser lida de forma não-linear, ou seja: se você quiser começar pelo meio, depois ler o último capítulo e voltar à parte inicial, tudo bem. Não compromete a leitura porque, apesar de existir uma lógica sequencial entre eles, os capítulos tratam de modo independente cada nuance desse elitismo no esporte.

Um exemplo: no Capítulo 9, falo sobre comida de estádio. As barraquinhas de sanduíche de pernil perdiam cada vez mais espaço a medida em que a fiscalização do lado de fora aumentava — até chegar ao ponto do entorno do Allianz Parque ser completamente fechado, e com o aval da diretoria palmeirense. Do lado de dentro, uma rede de fast food e a moda dos food trucks invadiram a praça de alimentação do torcedor. Nem preciso dizer que o preço também acompanhou esse upgrade.

Aí você acorda num domingo de manhã e vai assistir um jogo da Copa Paulista na Mooca. Além do ambiente familiar que impera nas redondezas, a procura por um doce tipicamente italiano dentro do estádio chama a atenção: são os tradicionais cannoli do Seo Antônio, há mais de 50 anos fazendo a alegria dos juventinos — e dos visitantes também, por que não? — na Javari.

Dessa forma, procurei destrinchar vários outros temas relacionados sob a ótica do torcedor: tem capítulo sobre os protestos contra o alto preço dos ingressos; nostalgia de quem viveu os tempos áureos de arquibancada na década de 90; torcedores favoráveis e radicalmente contrários ao futebol moderno; o papel das torcidas organizadas nessa discussão; acessibilidade nos estádios; a paixão pelo esporte passada de pai pra filho… e muito mais!

O livro foi produzido para fins acadêmicos. Fiz uma tiragem pequena, de apenas 10 exemplares, para entregar 6 na Universidade. Fiquei com os outros para recordação. Não cheguei a ir atrás de nenhuma editora para tentar viabilizar uma publicação, mas quem sabe um dia, né?

O gran finale

10 de dezembro de 2015, o dia da apresentação. Livro pronto, entregue duas semanas antes para análise da banca de qualificação.

Eu nunca estive tão tranquila em toda a minha vida como eu estava naquele dia. Era uma sensação de paz, de dever cumprido e, principalmente, de muita satisfação em ter produzido algo que saiu do jeitinho que eu queria.

Academicamente falando, minha preocupação maior era ter errado alguma coisa de ABNT no relatório, ou algo assim. De resto, sobre o livro mesmo, eu não tinha dúvidas sobre a qualidade do produto que eu estava apresentando.

E a apresentação em si fluiu como uma luva. Eu falava com tanta certeza e com tanta segurança sobre cada detalhe daquele projeto que parecia que eu ia flutuar. Sério, gente, falar desse dia pra mim é, até hoje, emocionante demais. Acho que só vou passar por outra experiência como essa o dia que eu casar ou tiver um filho, porque, olha… 😂😂

Ao encerrar minha fala e passar a palavra aos professores é que foi caindo a ficha de verdade. Peguei papel e caneta pra anotar as críticas que eles fariam, as coisas que eu precisaria corrigir no relatório, mas não tive o que anotar. Foram só elogios, e a partir daí comecei a enxergar tudo embaçado porque os olhos estavam marejados. Meu projeto recebeu três notas 10,0. Fui aprovada com louvor!

Por ter gabaritado a banca de qualificação, meu livro-reportagem foi indicado pela Universidades para concorrer um importante prêmio regional na categoria Jornalismo ao lado de outros colegas, que produziram ótimos documentários e que também obtiveram nota máxima.

O meu era o único não audiovisual. Também era o único daquele ano que foi produzido de forma individual (todos os outros eram de grupos de 3 alunos ou mais). O único produzido por uma mulher. O único sobre futebol.

O prêmio não veio, mas eu ergui o troféu — a minha conquista pessoal, de dar voz ao torcedor e cumprir uma promessa de mim para mim mesma feita lá em 2009, estava completa.

--

--

Letícia Oliveira
Casal Torcedor

Jornalista, 30 anos, palmeirense de coração, apaixonada por futebol e cria de arquibancada.