Agora eu consigo escrever
Estamos em meados de abril do ano de 2023 e somente hoje me dei conta do quão frágil e vulnerável estava nesses últimos oito meses.
As coisas foram acontecendo em série, uma atrás da outra, com breves intervalos. Primeiro a súbita notícia de que minha avó teria que ir para uma clínica de repouso.
Clínica de repouso, asilo, segundo lar… nenhum desses nomes me agrada. Sempre tive a sensação de que este “albergue compulsório de idosos”, todos necessitados de cuidados e de atenção, fosse um lugar frio, sem alma e infelizmente estava certa em minhas percepções.
O pior é que o dinheiro acaba regulando essa frieza, para mais ou para menos, e no final as pessoas acabam se encaixando onde conseguem, para suprir urgências e necessidades que a vida apresenta.
Minha avó ficou mal de uma hora para outra, muito rápido. Me pareceu algo que já estava ali de butuca esperando uma baixa na saúde para aflorar. A doença às vezes me parece “uma flor que hiberna ao sol”.
Depois disso, hospital.
Quarto de hospital, horários de visita.
Tempo de hospital.
Todo aquele cuidado e aquela luta diária de uma mente que deseja continuar vivendo, mesmo que esteja aprisionada dentro de um corpo que já não aguenta mais.
E eu ali observando e sentindo. E mesmo entendendo tudo isso, minha própria mente pregou uma peça em meu corpo e fui internada na noite em que estava dormindo no hospital com minha avó. Me levaram para o hospital ao lado, literalmente ao lado. Fiquei lá dois dias fazendo exames cardíacos e apesar do meu coração físico estar bem, o meu coração emocional estava começando a dar indícios de que precisava de cuidados.
Seguindo os acontecimentos, numa terça feira à tarde, num horário de visita, eu vi minha avó morrer. Eu estava sentada ao seu lado, conversando com ela, desejando que ela estivesse me ouvindo, tentando dizer que tudo fazia parte da natureza da vida, dizendo a ela tudo o que um dia ela me ensinou.
E assim ela se foi numa partida branda e tranquila, do melhor jeito que poderia ter sido naquela situação.
O luto é um sentimento estranho, cada um lida à sua maneira com o turbilhão de emoções e pensamentos. Apesar de já estar à sua espera, ele me pegou despreparada, precisei estudar sobre ele para entender o que estava passando internamente comigo.
Mal sabia eu que o luto iria, depois de menos de cinco meses, aparecer de novo de uma forma cruel e devastadora.
Depois de passar o réveillon com meus pais e desejar um ano melhor, com mais esperança e saúde, vi meus desejos naufragarem num domingo de janeiro com a notícia de que meu pai estava confuso e estranho e teria sido levado ao hospital.
No fundo eu sabia o que estava acontecendo.
No fundo eu não queria entender o que estava acontecendo.
Meu pai teve câncer e lutou com ele por muitos anos. A sua “flor que hiberna ao sol” estava criando raízes por todos os lados. Era na verdade mais uma árvore crescendo e se esgueirando por onde podia: ossos, pulmão, sistema nervoso.
O tempo é algo relativo, mas a velocidade com que tudo isso aconteceu foi brutal.
Quando você conhece alguém com câncer, sabe as chances que isso pode acontecer, mas ninguém conta com a velocidade da luz quando está acostumado às velocidades lentas e permanentes das dores do dia a dia.
Todo dia uma nova dor, todo dia as mesmas dores e a mesma esperança de melhora.
Tudo foi tão rápido que pareceu um devaneio.
Fiquei com meu pai nos poucos dias que ele esteve no hospital, não o tempo todo porque dói demais e também por causa da restrição de visita, do número de pessoas ao mesmo tempo.
Foi tudo tão rápido! Na hora a gente não percebe direito porque está atordoada, mas depois senti um certo conforto por saber que meu pai, um verdadeiro guerreiro, conseguiu se despedir de forma consciente de todos que amava.
Você já viu alguém tendo um ataque epilético? Eu desejo sinceramente que não. É muito triste e desolador, porque nem você nem a pessoa podem fazer nada além de esperar passar. Um sistema nervoso entrando em colapso e deixando um corpo colapsado.
No final com tudo mais tranquilizado e amortecido, já provavelmente sem consciência neste ponto, meio aqui no plano físico, meio no espiritual, meu pai se foi.
Este luto foi tão diferente do outro. Não sei se porque eu ainda não tinha saído de um e entrei em outro, mas foi mais profundo e complexo. Certamente ainda estou nele, tentando não me afogar nesse mar misterioso.
Fui arremessada dentro de um tsunami de sentimentos e também acabei acessando questionamentos sobre crenças, valores e outros aspectos da vida que estavam lá quietinhos à beira mar.
Como se não bastasse toda situação, tive dois problemas de saúde, um seguido do outro, além daquele que já contei aqui.
Fui internada duas vezes. Passei por todas as emoções de novo, só que agora comigo mesma.
Nada grave. Na verdade um deles um pouco grave, caso não fosse tratado rapidamente e o outro muito dolorido, como se tivesse parindo o mundo, só que neste caso uma “pequena pérola”, um cálculo criado pelo meu organismo.
Nesse meio caminho tentei escrever, me expressar, colocar no papel o que estava sentindo. Tudo em vão, não conseguia nada, um branco total como se eu estivesse anestesiada ainda com tanta medicação e efeitos colaterais.
Enfim, como diria a minha avó: tudo faz parte da natureza da vida.
Temos que seguir em frente!
Percebi que mesmo com pessoas queridas indo embora, seguindo seu caminho no fluxo natural da vida, elas permanecem com a gente, na gente. O que precisamos adaptar é a forma como nos relacionamos com elas agora que não estão mais no plano físico. Aprender a lidar com a saudade e criar novas maneiras de estar perto, sentir e compartilhar.
Fico pensando em como minha mãe lida e está lidando com tudo isso. Ela que em pouco tempo viu partir mãe e marido, dois amores longos e profundos. Meu consolo é que ela é forte, forte como uma leoa, disso tenho certeza e espero que ela saiba também.
Meu desejo para este ano é que o fluxo da vida entre em equilíbrio novamente.