Porque decidi sair do curso de 10 dias de meditação vipassana

Eglair Quicolli
Casulo Mutante
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10 min readJan 31, 2019
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Ao chegar no centro Dhamma Sarana senti que estava realizando um desejo antigo de passar dias meditando, focada e centrada no autoconhecimento. Estava um pouco ansiosa pois já tinha tentando me inscrever algumas vezes e dessa vez estava lá. Fiquei realmente feliz.

Passei por todo o processo inicial de se apresentar para assinar os termos de conduta, deixar o celular — na verdade deixei minha bolsa inteira — com eles e depois fui conhecer meu quarto e cama — Quarto nº 2, cama i.

Naquele dia mesmo, já iniciamos o nobre silêncio após uma apresentação do curso pelos coordenadores que reforçava os termos de conduta e tirava algumas dúvidas práticas sobre o dia-a-dia do curso.

Acordei no primeiro dia com disposição e às 4:15h da manhã já estava tomando meu banho para me preparar para a primeira sessão de duas horas de meditação na sala com o grupo. Depois café da manhã, um breve período de descanso, mais uma hora de meditação na sala, depois mais duas horas de meditação no quarto.

Já apareciam questionamentos e insights — alguns inesperados — e algo que julguei serem memórias esquecidas. Também já podia sentir um alerta de “dor à caminho” em meus joelhos e costas por ficar tanto tempo sentada e imóvel. Minha prática de yoga diária fez falta — lá não é permitido outras atividades durante o curso. Fora isso acabei não me alongando da forma que gostaria pois na palestra inicial disseram que era proibido fazer alongamentos que tivessem “muita plasticidade” — palavras usadas pelos coordenadores — pois isso poderia distrair os outros.

Nada de adhomukha ou virabhadrasana e muito menos sarvangasana. Apesar disso fiz alguns adhomukhas meio encolhida no espaço livre que havia entre a minha cama e o lençol branco que limitava meu casulo dentro do quarto. Afinal não queria atrapalhar ninguém.

Ficar sem poder me exercitar foi algo que realmente me incomodou. Outra coisa que lamentei foi não poder colocar uma canga ao sol e deitar na grama nas horas de descanso, pois haviam dito que a grama estava cheia de carrapatos e que não era para deitar lá fora. Outro alerta que fizeram foi sobre animais domésticos da vizinhança que pudessem aparecer, como cães e gatos. Era proibido dar atenção ou carinho para eles.

Hora do almoço — 11h da manhã. Comidinha gostosa, me senti em casa. Era praticamente o que havia feito na semana anterior: arroz, lentilha, abóbora assada e salada de alface com cenoura e beterraba ralada. Pratos e talheres lavados, fui dar uma volta nos limites que eram permitidos. Andei algumas vezes pelo caminho entre os alojamentos femininos, ia de um limite ao outro, fiz isso umas seis, sete vezes bem lentamente. Depois sentei um pouco num toco de árvore ao lado do riacho que passava pela lateral dos alojamentos femininos. Comecei a pensar sobre tudo o que havia se passado até ali, como as pessoas se portavam, como eu estava me sentindo, como a noção de tempo fica alterada e outros pensamentos e insight que tinham passado pela minha cabeça até então. Um pouco de tédio havia se instalado com certeza.

Resolvi entrar numa trilha paralela ao riacho e fiquei ali por algum tempo. Andei de um lado para o outro na trilha e permaneci observando a natureza, micro plantinhas e pequenos insetos. Tocou o sino para retornarmos à prática, e resolvi meditar no quarto, pois muitas pessoas estavam fazendo isso também. Seriam duas horas de meditação no quarto e mais duas no sala em grupo.

Foi ai que os acontecimentos que me levaram a desistir do curso começaram a aparecer. Não sei explicar o que destravou esses sentimentos em mim, mas no quarto, depois de um tempo meditando tranquilamente comecei a me sentir sufocada, com falta de ar. Abri os olhos e olhei em volta. Sentada em minha cama tive a sensação de estar num tipo de hospital — acho que os lençóis brancos separando as camas contribuíram para isso. Veio à tona uma ideia de que aquela era uma situação limite como quando acontece uma catástrofe. Sei lá porque pensei nisso. Senti um turbilhão no peito, uma dor terrível! A sensação era de isolamento e impotência, e a ideia de não poder me comunicar e me expressar bateu fundo em minha mente. Racionalmente eu sabia que aquilo não fazia sentido, mas também havia a sensação de que o tempo custaria uma eternidade para passar.

Me vi num mundo impessoal e insólito. Seria esse o meu mundo interno? Isso seria a verdadeira solidão? Tentando afastar esses pensamentos insanos, comecei a sentir uma dor angustiante crescendo no peito, na garganta, nos ombros. Uma falta de ar terrível. Estaria me afogando? Não, eu estava ali bem segura sentada numa cama envolta de paredes de lençóis brancos. Essa era a minha realidade externa. Ou seria um reflexo da minha realidade interna? Senti o medo e uma confusão mental se instalando.

Para não explodir em desespero, sai as pressas do quarto e fui para o meio da natureza. Sozinha ali fora tentei me acalmar. Fui ao banheiro, molhei a nuca, rosto e bebi água. Aquela sensação foi a pior coisa que já senti na vida. Será que um ataque cardíaco é assim? Uma sensação de sufocamento misturada com uma sensação de impotência, isso foi o que consegui formular sobre aquela dor que estava sentindo. Mesmo que eu quisesse não conseguiria nem gritar, o ar faltava.

Levei algum tempo para me recuperar e meio cambaleante entrei no quarto para continuar a meditar. Poucos minutos depois, tocou o sino para que todos fossem até a sala de meditação em grupo. Pensei — Graças à Deus, ficar em grupo talvez disperse essa sensação de isolamento!

Sentada em minha almofadinha nº 39, que ficava próximo à porta de entrada e às janelas, comecei a meditação conforme as instruções. Consegui me concentrar e manter o foco no ar que entra e no ar que sai das narinas. “Assim como entra, assim como sai”, era isso o que deveríamos fazer. Falando assim parece a coisa mais fácil do mundo, mas só parece. Consegui me concentrar e fiquei bem por algum tempo, e depois do que pareciam ser uns 40 minutos a sensação de falta de ar e dor no peito voltaram. Lutei com ela, relutei, lutei de novo, mas não suportei mais e saí rapidamente da sala para de novo passar por todo aquele processo de dor e desespero que estava sentindo antes.

Meus pensamentos tinham a velocidade da luz, estavam à mil — uma sensação desesperadora. Pior do que a mente estar à mil era a dor no peito. Em condições normais eu já teria ido para um PS com toda certeza. Lutando com o corpo e a mente consegui segurar as emoções e pensamentos me concentrando na respiração — que estava super ofegante . Entrei na sala depois de uma verdadeira luta interna e pensei — “Consegui me recuperar mais rápido agora, vamos lá você consegue!”

Retomei a meditação mas em pouquíssimos minutos tudo voltou como uma avalanche rápida e forte. Seria possível, de novo? Levantei e dessa vez fui pedir ajuda à gerente — eles usam esse termo mesmo: gerente — que estava meditando próximo à professora. Fomos para fora e eu desaguei de chorar. Falei como me sentia e ela com toda atenção me ouviu, conversou comigo e conseguiu me deixar mais calma depois de algum tempo. Eu estava assustada com aquelas dores sequenciais. Contei à ela tudo o que estava passando e ao mesmo tempo também pensava em como era bom dividir isso com alguém. Ela disse que marcaria uma conversa comigo e com a professora logo em seguida.

Com um pouco mais de confiança entrei na sala de meditação e posso dizer que só não tive mais outras “avalanches” porque ao menor sinal dos sintomas eu saia para “tomar um pouco de ar”. E fiquei nesse fluxo pelo resto do dia. E esse era apenas o dia 01.

Eu entrava no banheiro ou no quarto e lá estava o gatilho pronto para disparar. Percebi que me sentia sufocada em qualquer lugar fechado. O que está acontecendo comigo? Eu pensava assustada e cansada. Tive muitos pensamentos sobre as dores: Ataque de pânico? Claustrofobia? Apego às pessoas? Medo da morte? Porque minha mente está assim tão relutante? O que está acontecendo com o meu corpo? Pensamentos como esses apareciam e se amontoavam uns encima dos outros.

Eu sabia que isso era, ou poderia ser, parte do processo mas não sabia se queria passar por aquilo por mais nove dias consecutivos. Eu estava no meio do meu primeiro dia e já estava fazendo contagem regressiva, separando os dias em grupos de três estágios. Minha mente divagava entre mantras ou canções que me acalmavam e outras ideias que me distraiam como criar pequenos poemas. Tudo isso me acalmava e me ajudava à prosseguir.

Fui mais uma vez conversar com a gerente. Eu estava sem saber como lidar com aquilo e já pensava seriamente se deveria ou não continuar; se eu estava preparada para passar por tudo aquilo. Eu me perguntava sempre qual seria o meu limite — uma sensação de culpa e vergonha me invadia ao mesmo tempo que pensava isso.

A professora não pôde me atender conforme a gerente havia prometido, então acabei marcando uma entrevista particular com ela após a palestra noturna. Eu não estava exagerando. Sempre fui muito resistente à dor e não gosto de desistir fácil. A realidade é que meu corpo e minha mente estavam lutando bravamente minuto à minuto. Eu tremia inteira por dentro. Eu queria ficar e queria ir embora ao mesmo tempo. Eu pensava: “Preciso tentar ficar pelo menos mais alguns dias”. E ao mesmo tempo pensava que se eles não me liberassem, eu iria fugir dali de qualquer jeito.

Parece loucura escrevendo isso agora mas foi exatamente o que pensei na hora. Depois li alguns relatos de pessoas que completaram os dez dias e a maioria passa por isso, pensa em fugir, alguns fazem até planos de fuga. Outros relatam dores no corpo e também sensações e pensamentos conflitantes. Lá no curso, tentando elaborar o momento presente — o aqui e agora — eu só sabia que aquilo não parecia saudável para mim.

Percebi que essa era uma experiência muito mais radical do que tinha imaginado. Sei que concordei com os termos e condições de estar ali, porém comecei a pensar que havia cometido um equívoco e que no mínimo não estava preparada para aquilo, não daquela forma. Não estou julgando se algo é bom ou ruim, só estou expondo minha experiência e perspectiva.

Tudo o que li sobre meditação vipassana até agora e o que ouvi nas sessões e nas palestras enquanto fiquei no curso fazem muito sentido para mim. Os ensinamentos me soam verdadeiros, poderosos e dignos de confiança. E mesmo decidindo sair, sinto que essa decisão me trouxe algum aprendizado, especialmente sobre coragem, limites, positividade e alinhamento de propósito.

Confesso que a ideia de ter nove dias pela frente me assustou bastante pois inevitavelmente eu pensei que não seria sensato passar pela mesma experiência de dor por mais tempo. Se a dor era algo criada pela minha mente e não era “real”, por outro lado os órgãos afetados são bem reais para mim. Eu não estava a fim de colocar isso à prova.

Outro pensamento que me rondava era a do equilíbrio. Sei que sem disciplina, persistência e trabalho duro nada acontece e que a dor é algo inevitável na vida, mas não sentia que aquela rotina era algo equilibrado ou algo que eu conseguiria levar para o cotidiano, porque afinal uma hora todos saem do curso e voltam para as suas vidas, a não ser que alguém no meio do caminho decida seguir uma vida monástica.

Pessoalmente acredito em doses homeopáticas e constantes e penso que uma experiência em etapas talvez fosse melhor de absorver e digerir inicialmente. Imagino que o tempo de dez dias deve ter sido programado por algum motivo, mas algo gradual e constante seria mais eficaz do que algo pontual e severo, pelo menos para mim. Particularmente senti falta de um plano de exercícios para preparar o corpo para ficar tanto tempo sentada e imóvel. Enfim, esses são os meus pontos, uma visão totalmente pessoal.

De coração e mente abertos foi ouvir a palestra noturna para depois conversar com a professora. Eu ainda estava lutando com a vontade de ficar e de fugir ao mesmo tempo. Os conceitos e objetivos apresentados sobre a técnica eram infalíveis e as explicações dos motivos que faziam a maioria das pessoas terem dores e pensamentos indesejáveis eram claras e aceitáveis. Porém a forma como algumas ideias, palavras e pensamentos foram apresentados me fizeram decidir não continuar ali. Essa foi uma das mais complicadas decisões que já tomei.

Depois da palestra a professora me recebeu numa entrevista particular. Falei tudo o que estava sentindo e pensando, disse que concordava em parte com o que foi dito na palestra e conversamos sobre os pontos que eu discordava. Conversamos muito. Ela disse coisas para me encorajar à ficar, coisas com as quais concordei. Depois de muitas coisas ditas, eu reforcei meus motivos e a minha decisão. Eu estava certa do que queria naquele momento e ao mesmo tempo triste por ter certeza disso.

No segundo dia levantei e comecei arrumar minhas coisas logo após todas saíram do quarto. Tentei meditar um pouco mas estava muito triste e cansada depois de uma noite praticamente em claro. Fui instruída a sair somente quando todos estivessem na sala de meditação em grupo. Quando a hora chegou, eu saí com minha mala sentindo um misto de tristeza e tranquilidade.

Ao chegar em casa fiquei pensando se existia algum outro método para aprender as técnicas de vipassana e também tentar entender se esse seria o método mais propício para mim. Caso eu decida tentar novamente quero estar muito mais segura e mais forte para isso. De qualquer forma sai de lá com a certeza de que fiz a coisa certa naquele momento, e certamente aprendi algo valioso com isso. Cada um tem o seu tempo e cada experiência é única.

Resolvi escrever esse relato pois não encontrei nenhuma pessoa que quisessem compartilhar suas “falhas ou fraquezas” se é que a minha experiência se encaixa nessas palavras. Não encontrei nenhum relato de desistência do curso de 10 dias de meditação vipassana, mas encontrei esse relato da Eliane Brum que achei interessante e elucidativo.

Bom, essa foi a minha experiência e percepção pessoal, e as compartilho de coração aberto! Eu só posso agradecer! ❤

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