Crítica | Black Mirror (1° Temporada)

Angústia, desconforto, inquietude, genialidade e reflexão dão tom à série de produção britânica

Renan Weiser Rios
Catacrese
5 min readApr 27, 2017

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Atenção: esse review poderá conter pequenos spoilers da série.

Angústia, desconforto, inquietude, genialidade e reflexão.

Essas deveriam ser as principais tags de procura que se relacionam com a primeira temporada da série britânica criada por Charlie Brooker, a qual estreou no ano de 2011, e que, com sua abordagem singular, busca refletir/criticar sobre as necessidades e dependências criadas pela humanidade para com a tecnologia.

Black Mirror tem a proposta de ser curta em número de episódios e tempo de tela (três episódios, sendo dois deles com menos de 50 minutos de exibição), possuindo elenco e narrativas distintos entre capítulos — mas que se conversam de forma habilidosa no aspecto geral da série.

Entretanto, se a proposta é ser curta em episódios/minutos de tela, o contrário se dá no quesito tempo dispendido em raciocínio existencial e digestão de sentimentos revoltosos.

Com raízes claras em clássicos da literatura — como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, a série se posta em camadas, possuindo críticas de fácil acesso e entendimento ao grande público, que não demandam grande esforço mental para serem identificadas, e reflexões extremamente profundas sobre o comportamento humano e o sistema, as quais insistem em continuar a martelar na cabeça do telespectador por dias, semanas e até meses após o fim dos episódios.

Sua primeira temporada foi dividida em três atos: The National Anthem (O Hino Nacional), Fifteen Million Merits (Quinze Milhões de Méritos) e The Entire History of You (A História Inteira Sobre Você).

Em seu ato introdutório temos a narrativa sobre o Primeiro Ministro Inglês Michael Callow (Rory Kinnear, de Penny Dreadful) e o sequestro de Princesa Susannah (Lydia Wilson), o qual os sequestradores demandam como ato de pagamento pelo resgate de Susannah que Callow realize ato sexual com um porco em televisão nacional.

O episódio abre reflexão sobre a cultura de exposição criada pela era digital: a era da velocidade de (des)construção da imagem pessoal em prol do entretenimento, da falta de filtro da indústria midiática em sua busca da disputa pela notícia mais rápida — a qual guia seus apontamentos conforme feeds e tweets. A era da falta de empatia.

Próximo no play automático do Netflix, Fifteen Million Merits, encontramos o ápice de genialidade da primeira temporada (destaco que é extremamente difícil analisar o tom deste episódio sem dar spoilers, portanto, estejam avisados) quando somos apresentados a uma realidade futurística e distópica em que por troca de méritos (moeda de troca) uma parte da população tem o dever de pedalar em bicicletas diariamente em busca de gerar energia para as infinitas telas e máquinas que estão posicionadas no local. Nela, o grau máximo de sucesso de um indivíduo se dá quando ele é escolhido entre os tantos concorrentes do programa Hot Shot (uma clara sátira de Got Talent, Idols, etc) e recebe um espaço na grade de horário para se apresentar.

Nesse mundo acompanhamos Bing (Daniel Kaluuya, de Skins), o qual é extremamente abastado em méritos por ter herdado uma grande quantia de seu irmão. Ele presenteia seu interesse amoroso, Abi (Jessica Findlay, de Downton Abbey), com um ticket de entrada para Hot Shot. Todavia, os planos de ambos acabam não tendo tanto sucesso como esperado — e aqui seguro a explanação para não entregar o brilhante desfecho da história.

A reflexão sobre Fifteen Million Merits dói. O plot faz uma crítica direta para a sociedade do consumo excessivos em que vivemos. O culto à beleza — sempre na frente de talento e personalidade — , o escape cada vez maior para o mundo virtual, a padronização de indivíduo, o eterno trabalho para o ganho de moeda de troca para realizar compras que trazem breve satisfação. E o escritor também nos mostra o que já sabemos e escolhemos ignorar: não podemos culpar ninguém, senão nós mesmos, pelo estado de consumismo que o Estado se encontra.

O sistema (novamente ele) engloba e absorve a todos, nutrindo sempre a falsa impressão de poder de insurreição daqueles que se mostram irresignados.
No melhor estilo: “Ou você morre como herói, ou vive o bastante para se tornar o vilão”.

Por último, em The Entire History of You, vem a premissa de um futuro com pitadas do livro 1984, de George Orwell: e se pudéssemos gravar áudio e visual de tudo que acontece na nossa vida, através de nossa própria percepção, para que possamos lembrar em detalhes posteriormente?

Dentro desse conceito, somos postos em contato com Liam (Toby Kebbell, de Quarteto Fantástico), um jovem desempregado e instável, que passa por problemas de relacionamento com Fi (Jodie Whittaker, de Broadchurch).

O recurso de lembrança é utilizado de forma recorrente durante o episódio, inclusive com projeções de memória sendo colocadas em televisões para que mais de uma pessoa possa assistir um momento passado memorável (tanto de forma positiva, como negativa), ou para que, por exemplo, a equipe de segurança do aeroporto possa saber se, antes de chegar ao check-in da área de embarque, Liam não estava cometendo algum ato suspeito.

As duas principais críticas contidas nesse capítulo não podem ser mais claras: a cada vez mais significativa interferência que a tecnologia possui nas relações interpessoais e o já traçado caminho para uma sociedade onde a privacidade gradativamente se tornará um luxo. (Deixo em destaque a brilhante analogia realizada durante o episódio para os relacionamentos abusivos atuais, onde os já famigerados “quero ver todas suas mensagens com ele” se tornam em “me mostre as imagens de suas lembranças com ele” — uma cena que desemboca um sentimento indescritível na boca do estomago).

A primeira temporada de Black Mirror é uma sacudida no amago de quem assiste, com roteiro espetacular e episódios que sempre trazem um elenco de respeito, a série exacerba qualidade e desencadeia uma fileira de raciocínios existenciais.

Indico ela com todas minhas forças para quem desejar dar uma balançada no status quo do seu mundo de séries. Mas já aviso de antemão: a sua relação com o espelho negro vai sofrer mudanças.

Nota: 6/6 (Excelente)

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