Deuses Americanos — 1ª Temporada | Crítica

Fotografia surrealista e excelentes atuações no primeiro ano da série que adapta romance de Neil Gaiman

Lucas Kalikowski
Catacrese
5 min readJun 20, 2017

--

Criada por Neil Gaiman. Produzida por Bryan Fuller, Neil Gaiman e Michael Green. Com Ricky Whittle, Emily Browning, Crispin Glover, Bruce Langley, Yetide Badaki, Pablo Schreiber, Ian McShane, Gillian Anderson, Demore Barnes, Chris Obi, Omid Abtahi, Cloris Leachman, Orlando Jones, Peter Stormare, Mousa Kraish, Corbin Bernsen, Jonathan Tucker, Kristin Chenoweth, Jeremy Davies.

Esse texto conterá spoilers da primeira temporada.

Certo momento, em meio ao season finale, Mad Sweeney vira para Laura Moon e diz: e o que você acha que os deuses fazem? Fazem o que sempre fizeram: ferram com todos nós. Não leve a mal. Realmente, o leprechaum tinha razão.

Não é novidade a história: o homem acredita no deus, da fé o deus surge e provê ao homem o que ele pediu em oração. Entretanto, mesmo que não inédita, a premissa não deixa de ser menos saborosa. Graças à competência dos produtores, a história da primeira temporada de Deuses Americanos, a qual aborda exatamente esse tópico, mostra meandros e novas cores, fugindo da simples construção lógica exposta.

Construída com diversos personagens, mas particularmente sob o ponto de vista do ex-presidiário Shadow Moon (Whittle), a trama mostra o mundo de Shadow virar do avesso quando, no dia em que sai do cárcere, recebe a notícia da morte de sua esposa (Browning). Sem nada a perder, acaba aceitando o emprego oferecido pelo misterioso Mr. Wednesday (McShane) e embarca em uma viagem surreal pelos Estados Unidos.

Começando pelo ponto negativo, a temporada, com apenas oito episódios, caminha sobre o gelo fino do mistério. Assim, em apenas um arco de descobrimento, ao longo dos episódios, cada vez mais perguntas vão sendo levantadas sem responder aos questionamentos anteriores. Para um telespectador mais impaciente isso pode fazer com que ele desista da jornada, pois os episódios acabam exigindo sua total atenção sem dar nada em troca. Se desconsiderar o excesso de perguntas, as quais serão respondidas em temporadas vindouras, a série é um novo sopro de vida a quem a assiste, considerando sua qualidade técnica e sua estilística única.

O primeiro destaque óbvio trazido pela série foi sua identidade única; com ares de David Lynch, o tom surreal nos faz pensar, muitas vezes, que estamos vendo uma grande pintura de Salvador Dali. Já na abertura podemos ver, através da psicodelia, que o pano de fundo será a dicotomia entre as novas e as velhas crenças — o astronauta crucificado, o Menorá com as diversas entradas de plugue existentes, o Buda em meio aos fármacos, o corvo com rastro de foguete atrás, entre outros. Além disso, os constantes sonhos de Shadow trazem consigo uma paleta colorida que varia entre o rosa e o azul, em luz neon.

Aliás, Shadow é o único ponto real da história. Enquanto em seu carro com Wednesday, participamos da road trip sem desconforto algum, mas no momento em que mais personagens entram em cena, imediatamente o semblante de Shadow (bem como o nosso), se altera para um misto de desconforto e curiosidade, com uma dúvida sobre o que é real e o que não é.

A coragem na quebra de paradigmas foi uma constante em cada episódio. Com enfoques bem definidos a cada semana, em sua estreia a série abordou, ainda que brevemente, os problemas enfrentados por egressos do sistema prisional, a segunda semana foi inaugurada por um discurso fervoroso de racismo estrutural. No terceiro episódio presenciamos uma das cenas de sexo mais íntimas e comoventes veiculadas na televisão (curiosamente, entre dois homens muçulmanos). Houve também um belo episódio que critica a cultura bélica de liberação de armas adotada pelo espírito norte-americano, e finaliza mostrando o empoderamento feminino na pessoa de Bilquis (Badaki), em combate com o machismo e a misoginia.

É indubitável que todos os atores atuam de forma primorosa, mas os maiores destaques ficam por conta de Browning (Laura Moon), Schreiber (Mad Sweeney), Anderson (Media) e, claro, McShane (Wednesday). A química nas cenas entre Laura e Mad Sweeney é evidente, tanto que, no episódio que retrata a história da entidade irlandesa, Browning deu rosto à pessoa responsável por trazê-lo às Américas. McShane mostra toda a canastrice necessária para o papel que exerce. E Anderson protagonizou o melhor episódio da série (Lemon Scented You), onde personificou com esmero as personalidades de David Bowie e Marilyn Monroe.

Outro grande acerto foi (por enquanto) a exclusão dos Mrs. Town, Wood e Stone — personagens do romance original. Ao excluí-los, a série abriu a possibilidade de inserir os Homens Sem Rosto, que, por sua vez, podem personificar o Mr. World (Glover) e ainda adicionam mais tensão à atmosfera lynchiana, com sua total ausência de feições, figurino saliente e movimentos coreografados.

Terminando com um season finale à altura do que foi todo o primeiro ano, Deuses Americanos responde apenas uma das perguntas ao mostrar que Wednesday, na verdade, é Odin, do panteão nórdico. Muitas pontas ficaram soltas nas últimas cenas, como o que Laura Moon irá fazer agora que sabe que foi Odin quem mandou matá-la, ou como vai ser a reação dos humanos agora que a Páscoa minguou todas as plantações?

De qualquer forma, o que antes estava em um patamar de guerra fria passou a ser guerra declarada. E estamos bem no meio dela. Como isso é bom.

Nota: 6/6 (Ótimo)

--

--