O Universo Compartilhado e a Preguiça de Pensar
Eu estava instalado no vazio, na inexistência, e aceitava isso. Tudo isso fazia de mim uma pessoa desinteressante. Mas eu não queria ser interessante, era muito difícil. (Charles Bukowski)
Assim como em qualquer outra arte, o cinema é feito de novidades. Em 2009, quando o megalomaníaco James Cameron lançou Avatar e toda sua tecnologia 3D, muitas produtoras seguiram a onda do sucesso e começaram um processo de conversão de suas obras, gerando uma banalização desnecessária da nova técnica com modificações inócuas.
Obviamente, a adoção teve resultados pífios, pois apenas justificaram o aumento dos ingressos sem nem, ao menos, melhorar a qualidade da imersão do espectador. Passado algum tempo, as sessões com filmes 3D foram perdendo audiência para as sessões com a versão tradicional. Muito mais agradável, visual e financeiramente.
Concomitante a isso, em 2008, mas com a ideia melhor sedimentada em 2010, a Marvel Studios inova o conceito de cinema, novamente (com o perdão da redundância). Ao invés de apostar em algo imediato e fadado ao fracasso com os óculos 3D, resolveu investir na expectativa do que viria a ser Os Vingadores em 2012. Como eles fizeram isso? Simplesmente inseriram nos longas pistas aqui e ali, insinuando que os seus filmes de super-heróis se passariam em um mesmo universo.
A tática, de efeito mediato e menos urgente que a conversão tridimensional, não foi copiada de pronto, mas com o tempo percebe-se que começou a tomar forma no mercado cinematográfico e seus resultados, historicamente, são previsíveis: a saturação, mas, dessa vez, muito mais grave, a preguiça.
O conceito de universo compartilhado é deveras muito atraente. Fazer o público brincar com o filme, procurando pistas de ligações é como ser um detetive investigando um caso: enquanto umas pistas são gritantemente evidentes, outras são sutis e quase imperceptíveis. Claro, além disso, há a própria ideia em si. Todos nós gostamos de fazer parte de algo maior, algo que por si só não vai se encerrar dentro daqueles 120 minutos.
A beleza da genialidade desse conceito é que funciona como uma bola de neve. Antes era um mero floco, mas que com o passar do tempo, e o engrandecimento dos projetos, transforma-se num Leviatã que consome quase um estúdio inteiro, escravizando mentes (escravos que ganham rios de dinheiro, um paradoxo) e destinando departamentos estritamente para a retroalimentação da franquia até resultar em completa autofagia.
Os primeiros indícios estão começando a dar as caras. A maior concorrente da Marvel, no ramo dos super-heróis, a DC Comics (de propriedade da Warner para filmes e desenhos) ainda engatinha nesse sentido — já possui três filmes em seu universo. Contudo, o eco começou a reverberar em confins inesperados: a Hasbro já anunciou que tem o desejo de unir Transformers, G.I. Joe, e, não contentes ainda, querem levar a franquia Transformers a Cybertron e fazer diversos novos filmes; Hanna-Barbera já manifestou que desej também reunir, Flinstones, Jetsons, Corrida Maluca, Scooby-Doo, mas não foram revelados maiores detalhes; os monstros da Legendary, King Kong e Godzilla, se encontrarão em 2020 — pelo trailer de Skull Island, prólogo de King Kong –, já podemos ver indícios das conexões entre ambos; o universo compartilhado dos monstros da Universal também vai começar em 2017, A Múmia, estrelado por Tom Cruise, com estreia prevista para 2017, dará início a vários filmes que poderão culminar em um encontro entre Drácula, Frankstein, Lobisomem e, claro, a Múmia.
Óbvio, tudo isso são projetos, mas também temos os que já são realidades, a DC Comics/Warner, como já mencionado, inclusive em relação às suas séries para televisão; os X-Men e o Deadpool, que pertencem a Fox, com suas infinitas linhas temporais e loops; e Star Wars/Disney, que agora, em Dezembro, irá lançar Rogue One, que não terá envolvimento com os personagens icônicos; há também um filme sobre o Han Solo jovem em desenvolvimento.
Se tudo isso não significa saturação, não sei mais o que é.
Além disso, evidentemente, há um claro exaurimento não só de ideias, mas também de potenciais. Antes, os filmes precisavam encerrarem-se em si mesmos, tinham que ser coesos, claros e autossuficientes. Hoje, os filmes partem de premissas que o público deveria ter visto sabe-se lá em qual outro, se encerram em alguma outra franquia lá no futuro e buscam elementos de outras obras todo o tempo. Não se tem mais o interesse em ter um roteiro inteligente ou resoluto. O que isso pode resultar é extremamente preocupante: no momento em que os profissionais se acostumam em pensar menos e o público não exige isso, a queda da qualidade é lógica.
Infelizmente, de novo, estamos em meio a um mundo em que transbordam as mesmas ideias. De fato, o conceito de ser parte de algo maior encanta muito, mas até que ponto isso não impede a própria obra de ser maior do que é? Não há mais parcimônia. Não se faz aqui uma apologia à independência dos filmes, é apenas uma observação de que nem tudo precisa ser assim.
A preguiça de não querer inovar e seguir uma tendência, a preguiça de não pensar em todos os pontos de seu trabalho, tudo isso é muito mais fácil quando aceito por nós.