Uma catarse tecnológica

Vinícius Andrade
Catarse
Published in
9 min readAug 15, 2018

--

Trazer projetos criativos ao mundo. Com essa missão o Catarse vem sendo, há quase 8 anos, referência em financiamento coletivo no Brasil.

Por trás dessa história têm muitas pessoas — nossa equipe, criadores e uma imensa comunidade de gente disposta a se juntar para fazer projetos acontecerem. E também tem muita tecnologia, essa coisa abstrata que nos permite existir e que nos ajudou a criar uma das maiores plataformas de financiamento coletivo da América Latina. Nós entendemos que a tecnologia tem papel fundamental na transformação da nossa sociedade. Tratamos a tecnologia do Catarse com o cuidado que se deve ter com ferramentas que geram interações sociais e potencial de mudança. Ela é uma das vias de nossa expressão, das ideias que queremos comunicar. É instrumento essencial para impactarmos o que está ao nosso alcance, e reunir pessoas que desejam fazer parte dessas ideias.

Quinta-feira, 11 de Novembro de 2010. 11:37 da manhã. A história do código do Catarse tem início. Foi nesse exato momento que o primeiro trecho do que viria a ser a nossa plataforma foi oficialmente escrito. Ao longo desses quase 7 anos, 841 pessoas replicaram o projeto para os mais diversos fins. Cerca de 16.110 contribuições foram realizadas por 57 pessoas que, juntas, ajudaram a escrever 144.354 linhas de código. Essas linhas permitiram que 509.128 pessoas se juntassem para arrecadar R$ 83 milhões e tirar 7.678 projetos do papel (e enquanto você lê esse post, esse número não para de crescer).

Dependendo da perspectiva adotada, cada um desses números pode ter mais ou menos significados, e poderíamos investir algum tempo comparando e analisando cada um deles. Mas isso por si só não nos interessa. O que queremos explorar aqui é como esses números estão ligados, e quais as consequências disso para o mundo ao nosso redor.

Como linhas de código se transformam em projetos realizados. Como softwares transformam relações entre pessoas. Para entender essas transformações, precisamos olhar para a realidade em que elas acontecem.

“Isso é uma característica primordial da nossa espécie. Somos capazes de re-significar partes do universo ao nosso redor, de formas que nos tornam capazes de melhor controlar e compreender o que nos circunda, enquanto disseminamos esse conhecimento.”

O digital e o real se uniram. Os avanços das últimas décadas mudaram determinantemente a humanidade, num processo de digitalização da vida que já se pode dizer irreversível. A distinção entre real e digital do início da era do computador pessoal já não é mais pertinente.

Falamos de e-mail em contraponto ao mail (correspondência), mas a comunicação pelo primeiro impera sobre o segundo. O e-commerce avança sobre o comércio tradicional, e a imprensa é hoje tanto digital quanto impressa. Cada uma dessas indústrias teve suas bases completamente modificadas, algumas delas ainda lutam para se adaptar à novas perspectivas de tempo e espaço que esse novo ambiente trás. E a tendência é que vejamos cada vez mais indústrias se transformarem dessa forma. Para quem faz parte da construção desse novo mundo, as vezes é fácil perder a perspectiva do que se está construindo. Mas fato é que a mudança está aí, é muito grande e acelera cada vez mais. Para entender como podemos influenciar esse processo, precisamos entender como relações humanas acontecem nesse novo contexto.

Humanos são seres sociais, que se mantém como tais construindo relações com seus pares. Essas relações se constroem basicamente por meio de comunicação. Comunicação, por sua vez, é o transporte de informação de um ponto para outro(s) da(s) relação(ões). Então é a troca de informação que sustenta a sociedade. E o que há de mais fundamental nas mudanças impulsionadas por tecnologia que vimos acontecer nas últimas décadas é justamente a nova dinâmica de troca de informações que elas propiciaram. As dimensões de espaço e tempo da comunicação mudaram drasticamente. E por consequência, as relações humanas. Tudo isso acontecendo num espaço determinado. Um novo ambiente, que sustenta esse novo mundo.

Esse novo ambiente pode ser dissecado em camadas. Na base, temos o que permite que ele se manifeste fisicamente. Pulsos elétricos: ondas eletromagnéticas viajando por diferentes meios. Do roteador da sua sala até seu computador, pelo ar. Do seu celular até um satélite na órbita da Terra. Ou entre continentes, por meio de gigantescos cabos suboceânicos recheados de fibra ótica.

À partir dessa base temos uma série de outras camadas que se utilizam de diversas abstrações para traduzir essas manifestações físicas em algo que humanos possam significar, compreender e interagir. Isso é uma característica primordial da nossa espécie. Somos capazes de re-significar partes do universo ao nosso redor, de formas que nos tornam capazes de melhor controlar e compreender o que nos circunda, enquanto disseminamos esse conhecimento.

“Os contextos em que relações humanas acontecem são sistemas extremamente complexos. O sucesso da web prova que em ambientes como esse, a exposição do sistema a uma certa aleatoriedade é benéfica e propicia mais solidez a esse sistema no longo prazo.”

Ressignificamos a pedra, e a transformamos em lar. Controlamos o fogo, e dele extraímos conforto. Reinterpretamos a natureza, e nos tornamos agricultores. Da energia elétrica fizemos modernas formas de comunicação. E a cada nova camada criamos mais símbolos e mais formas de explorar aquela nova realidade. Mais ferramentas que nos ajudam a compreender e a reconstruir o universo em que aquela realidade existe.

Podemos dizer que o Catarse está numa camada superficial de um desses pequenos universos de ressignificações humanas. Sustentando-o, vemos um conjunto de outras abstrações, que hoje conhecemos como internet. Entender essa abstração vai nos ajudar na construção de um pensamento mais completo sobre o que o Catarse e sua tecnologia significam no mundo que os circunda.

Se concordamos que o digital se tornou o real, podemos dizer que essa fusão aconteceu muito pela chegada da internet e, principalmente, pela consolidação da web como seu principal uso. As duas são, afinal, as grandes protagonistas da revolução que vivemos nas últimas décadas. Elas nos trouxeram um meio eficiente e abrangente de troca de informações, flexível o suficiente para nos servir tanto para enviar mensagens com gifs de gatos tocando piano para a família, quanto para realizar vídeo-chamadas com astronautas no espaço. Tanto quanto sua flexibilidade, o que impressiona é a velocidade com que elas transformaram o mundo. Sabemos que isso se deve muito pelo fato delas terem alterado um aspecto essencial das relações humanas. Mas, como criadores de tecnologia, queremos compreender mais a fundo esse fenômeno para, quem sabe, reproduzi-lo, mesmo que em menor escala, no contexto em que atuamos.

Cabe aqui brevemente explicar e distinguir o que são a internet e a web. Internet é o nome da infraestrutura de rede que conecta bilhões de dispositivos ao redor do planeta. Esses milhões de dispositivos comunicam-se entre si utilizando-se de protocolos específicos. A web, ou World Wide Web, se utiliza de um pequeno conjunto desses protocolos para permitir a troca de informações entre os integrantes de sua rede. Dessa forma, podemos dizer que a web é um substrato da internet.

Quando mergulhamos na compreensão dos elementos que fizeram da web uma grande revolução tecnológica, um atributo principal se destaca: sua arquitetura aberta. A decisão de Tim Berners-Lee, o “inventor” da web, de não construí-la em software proprietário permitiu a criação de um ambiente de grande experimentação. Uma comunidade enorme de desenvolvedores se criou ao redor do projeto, desenvolvendo soluções para modificá-lo e extender suas capacidades. Ao longo do tempo, as boas ideias foram permanecendo e se tornando padrões, enquanto as que não funcionavam tão bem iam sendo descartadas.

Num processo similar ao da adaptação das espécies na natureza, a construção colaborativa nesse novo ambiente serviu para modificar seu desenho inicial, e acabou gerando um ecossistema sólido e em constante evolução. Esse processo é muito orgânico, e persiste até hoje.

“Quando falamos que o Catarse tem código aberto, estamos dizendo que qualquer pessoa pode ler, copiar ou modificar o texto que contém todas as instruções que precisamos passar para que os computadores dos nossos usuários e os nossos se comuniquem da forma que queremos.”

Os contextos em que relações humanas acontecem são sistemas extremamente complexos. O sucesso da web prova que em ambientes como esse, a exposição do sistema a uma certa aleatoriedade é benéfica e propicia mais solidez a esse sistema no longo prazo. Seria muito mais difícil termos uma internet com as capacidades que nela observamos hoje se o seu desenvolvimento fosse ditado por um conjunto pequeno de pessoas, ou se sua utilização fosse ligada a uma relação comercial direta. Nesse sentido, a natureza aberta do código desempenhou um aspecto fundamental.

Essa ideia é crucial e ajuda a sustentar o racional por trás do código aberto do Catarse. Para transformar o pequeno pedaço da web que chamamos de Catarse, precisamos instruí-la: descrever como o seu navegador deve lidar com os dados que os computadores do Catarse vão mandar para ele e como a nossa plataforma vai responder aos dados que você enviará. Para fazer isso, utilizamos programação de computadores. Escrevemos uma série de instruções que o seu navegador e nossos computadores processarão, e é baseado nessas instruções que cada detalhe do que acontece enquanto você interage com nosso website é determinado.

Esse código nada mais é do que texto. Um texto de natureza bem específica, normalmente escrito numa linguagem de programação, que segue uma série de convenções criadas para garantir que uma ou mais pessoas consiga compreender aquele texto muito bem ao longo do tempo, e colaborar na construção dele. Esse código é interpretado por computadores, que o utilizam para processar os dados que chegam e que saem dele.

Então, quando falamos que o Catarse tem código aberto, estamos dizendo que qualquer pessoa pode ler, copiar ou modificar o texto que contém todas as instruções que precisamos passar para que os computadores dos nossos usuários e os nossos se comuniquem da forma que queremos.

Um texto especial com a característica única de poder influenciar de forma determinante relações humanas. Como outros tipos textuais, o código é também forma de expressão. Sendo inclusive amparado pelo direito à liberdade de expressão, essa ferramenta deve ser cada vez mais vista como um poderoso instrumento da sociedade.

O código escrito pelo Catarse diz algo para sua comunidade e a sociedade ao seu redor. Ele mostra que podemos nos organizar ao redor de grandes ideias para fazê-las acontecer. Ele diz que não precisamos deixar na mão de alguns poucos a decisão do que vai ou não ser criado. E que criadores devem ser livres para levar adiante suas próprias ideias.

“A relação de forças do mundo real se transferiu para o mundo digital, e começamos a entender como em alguns pontos a arquitetura da web e da internet falham em proporcionar uma forma mais igualitária de acesso à informação.”

Nossa missão e nossa tecnologia se unem. O código é nossa ferramenta para expressar para o mundo uma ideia, e permitir que as pessoas que querem fazer parte dessa ideia se encontrem. Ele é aberto para que outros possam reproduzir essas ideias em outros contextos, e para que juntos possamos pensar em formas cada vez melhores de fazer acontecer.

Sabemos que, apesar do muito que já conquistamos, nossas ideias podem evoluir ainda mais. A web e a internet continuam em franca evolução. Algumas partes do mundo apenas recentemente tiveram contato com essas tecnologias, e outras ainda nem chegaram lá.

A relação de forças do mundo real se transferiu para o mundo digital, e começamos a entender como em alguns pontos a arquitetura da web e da internet falham em proporcionar uma forma mais igualitária de acesso à informação.

Nosso projeto olha atentamente para o futuro que se desenha, e temos o objetivo de ocupar os novos espaços que surgirem com nossa visão de mundo. Estamos nesse exato momento trabalhando para tornar possível que o Catarse se modifique bastante nos próximos anos. Esse momento aqui descrito no texto logo será passado. Esperamos poder olhar para essa expressão em texto aqui registrada como um marco que dizia sutilmente a todos: estamos em processo de nos modificarmos.

O nosso desafio sempre é como nos desdobrarmos para ir em direção a esses horizontes ao mesmo tempo em que mantemos a nossa plataforma no ar. Um malabarismo entre a necessidade de seguir para o futuro e ao mesmo tempo manter tudo transcorrendo bem no presente. Queremos fazer isso com a ajuda de muitos. O desafio é sempre grande, mas faz parte de nossa natureza, assim como da web, de não permanecer, de sermos algo em constante movimento.

Seguiremos assim.

--

--