A viagem vai ser tranquila

Karina Rodrigues
Catarse Crônica
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9 min readJul 22, 2021

Aviso: o conto possui gatilho de assédio sexual.

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_ Igor, quanto tempo! Saudade de você.

_ E aí Karina! Como está essa sua vida nova na terra do Tio Sam? As atividades do doutorado sanduíche já começaram?

_ Está bem… Você sabe né, estou me adaptando ainda. Ainda moro no Airbnb que aluguei para ter tempo de procurar um local permanente para morar. As atividades do ‘sanduíche’ começaram essa semana e a universidade fica bem distante, às vezes é difícil ir de ônibus. Sinto falta daquela facilidade de se locomover de quem mora na Zona Sul do Rio e não sai muito da região.

_ Esse seu “está bem” claramente contrasta com seu semblante. Não estou captando uma vibe boa daí não. Eu te conheço não é de ontem, não é? Me conta direito o que aconteceu, me fala dos bastidores dessa história “de sonho” aí.

_ Você e sua perspicácia. Bom… está com tempo?

_ Estou sim.

_Então senta que lá vem história.

“Tudo começou quando eu mesma não estava exatamente inclinada a viajar. Acho que você pode me compreender bem, Igor. Eu tinha muito bons amigos no Rio e um relacionamento recém iniciado. A crise econômica ainda não havia se instaurado por completo na cidade e a cultura ainda era abundante: shows de graça na praia, festas de todos os ritmos, feiras ao ar livre e aquela natureza exuberante. A ideia de passar um ano num lugar em que os bares fecham cedo, não tem samba, cerveja no copo americano, sem carnaval, além de ser bem mais frio, não era uma troca justa. Mesmo com todos esses pensamentos, minha ida era a escolha mais lógica para alavancar minha carreira. Então eu fui.

A noite anterior foi de ansiedade e muitas malas. Capricorniana como sou, fiz questão de levar os “cais” possíveis: roupas preferidas, sapatos confortáveis, livros de cabeceira. Era uma mala vermelha (bem) grande e outra marrom de tamanho médio. A menor carregava os itens mais pesados, o que obviamente não deixou a outra mala menos pesada. Eu carregava ainda uma mochila com itens de valor, e um casaco vermelho vivo grande, daqueles que esquentam muito.

Pois bem. Saí de casa cedo rumo ao Galeão. Lembro de meu amigo Thiago, que me levou ao aeroporto, dizendo “Vai ser tranquila a viagem. Brilha lá! Sentirei saudades”. Bagagens dentro do peso permitido, check. Documentos do visto de estudante na bolsinha, check. Entro no avião com o peso de estar deixando muito para trás, mas com vontade de fazer do limão uma limonada.

United States of America, girl. Apesar do imperialismo, até que seria bom explorar a cultura do Jazz e do Blues, que eu tanto escutava à época. Estaria em San Diego também, e o México poderia me salvar da frieza anglo-saxã a apenas uma fronteira de distância. Pensemos sempre no lado positivo. Vai melhorar o inglês, Karina — elucubrava em voz alta, que era para eu mesma me ouvir.

O avião decolou, e eu tentei virar a página. Mas calma, meu amigo, as coisas não transcorreram tão óbvias e suaves assim. Eis que depois de 120 minutos de voo, o comissário de bordo nos avisou que o piloto da aeronave estava retornando ao Rio de Janeiro. O QUÊ? Será que os deuses haviam escutado meu inconsciente clamando por permanecer no Rio? Ou teria sido um problema grave na aeronave que traria minha vida ao fim, colocando em meus minutos finais o eterno arrependimento de ter saído?

As aeromoças pediam calma, pediam que permanecêssemos em nossos assentos, falando que tudo estava bem. Como poderia? Se tudo estivesse bem, estaríamos voando em uma direção completamente oposta! Minha fé andava meio abalada, mas naquele voo foi indignamente restaurada. “Mãe divina, tenho muito a oferecer para a humanidade, poupe-me a humilhação de morrer tão jovem e tão cheia de gana de viver. Pai Divino, arquiteto do universo, me tira dessa que eu te quebro uma depois!”

Me levantei, respirei fundo e fui ao banheiro jogar uma água gelada na cara, certificando-me de que ainda estava viva. Às vezes tenho disso, de querer sentir frio pra saber se não estou sonhando, ou já desfalecida, vagando em algum canto do plano astral. Quando cheguei perto do corredor, a alguns metros da primeira classe, vislumbrei dos aeromoços segurando uma mulher completamente descabelada, bufando de raiva, cheia de arranhões e um olho roxo. Olhei com meus olhos arregalados para o senhor que estava na minha frente na fila do banheiro. “Sabe o que houve ali?” “Parece que estamos voltando porque essa moça e o marido estavam aos murros na primeira classe”.

Antes de entender bem o que eu sentia, divaguei por instantes sobre o motivo pelo qual um casal se esbofetearia na primeira classe de um voo internacional. Se não fosse algo doentiamente crônico do relacionamento, talvez tenha sido o recebimento de uma mensagem anônima denunciando uma traição, ou algum comentário maldoso num dia ruim… qualquer coisa capaz de destampar o recipiente das frustrações acumuladas. Vai saber. No final, não tinha certeza se ficava aliviada por não estar presenciando uma pane no avião, ou tensa de pensar que as longas horas na aeronave se alongariam ainda mais.

Quando o avião pousou, o alívio tomou posse de mim. E um cansaço — retiveram os passageiros no avião por mais de quatro horas madrugada a dentro, para depois de tão longa espera cancelarem o voo. Mais uma noite no Rio. Eu teria que me despedir da cidade mais uma vez.

Na manhã seguinte, do hotel que me disponibilizaram, remarquei o voo falido. “Senhora, hoje não tem mais voo, o seu será amanhã, a partir de São Paulo.”. Claro que naquele dia encontrei algumas pessoas às quais nutria afetos . Ou seja, mais despedidas, o que era o oposto de um golpe de misericórdia para uma alma hesitante. SDU — GRU, check. Bagagens dentro do peso permitido, check. Documentos do visto de estudante na bolsinha, check. Ai que cansaço.

Enfim, Deus meu, estava no voo que me levaria para a terra prometida em que viveria meus próximos 12 meses. Ao meu lado, sentou um estrangeiro com roupas que li como hindus. Os pais desse homem, bem vestidos e simpáticos, se sentaram logo atrás de nós, na fileira lateral direita do avião. Tive a sorte de me sentar no corredor e tudo corria bem. Tão bem quanto pode ser uma viagem desconfortável de avião, claro. Ainda tive a mordomia de pedir comida vegetariana, que veio antes de todos os outros pratos.

Eis que faltando 120 minutos para chegar a Houston, onde faríamos as conexões, acordo e me deparo com movimentos estranhos do meu lado. Sim, era real, eu não estava sonhando. O estrangeiro se masturbava ao meu lado, debaixo do cobertor. Seu cheiro forte se espalhava no curto espaço entre o banco em que estávamos sentados e o banco posterior. E eu congelei. Não podia ser. Eu, estrangeira, chegando num país desconhecido, já doída, já cansada do episódio com o avião anterior. Não era possível. Juntei o que restava de dignidade de mim e, sem coragem de expor a situação para alguém da companhia aérea, simplesmente acendi todas as luzes que pude. A luz de leitura, a luz da tela do monitor à minha frente, a luz da tela de meu computador. Ele sabia que havia sido pego. Desgraçado. Se arrumou e fingiu que nada havia acontecido. Nessas horas, gostaria de saber ser bem mais má do que racionalmente me permito ser. Ter gritado, ter filmado, ter visto ele sendo preso, impedido de entrar no país ao qual estávamos chegando. Completamente humilhado, assim como eu me sentia.

O avião enfim pousou. Segurei o choro e guardei um resto de simpatia para mostrar meus documentos na imigração. Mas já se via no meu andar que eu carregava coisas demais, malas e sentimentos de impotência. Andava cabisbaixa, torta, encurvada. Era o máximo que eu poderia fazer — continuar caminhando, de que maneira fosse. Não havia escape. Era seguir em frente ou seguir em frente.

Houston-San Diego: check. A maior felicidade foi ver que não tinha ninguém ao meu lado no avião. Eu era incapaz de trocar palavras com quem quer que fosse. A aeromoça chegou, perguntou se eu precisava de alguma coisa, e se eu queria um snack. Estava morrendo de fome, mas sequer tive forças para dizer que sim. “Só quero chegar, só quero chegar”, dizia a mim mesma.

Cheguei no aeroporto de San Diego. Peguei as malas pesadas, pensando — já aconteceu o suficiente, agora a viagem vai ser suave. Ledo engano. Sem um chip de celular que funcionasse nos Estados Unidos, para pedir um Uber, fui ao ponto de táxi, já esperando uma tarifa alta. O taxista, Vietnamita recém chegado ao país, mal sabia falar inglês, tampouco usar o GPS. Como eu iria guiá-lo até o endereço impresso da página do Airbnb? “It is in Hillcrest, sir, Hillcrest. Leave me anywhere in Hillcrest”. Depois de uns bons 15 minutos manuseando o GPS enquanto dirigia na highway, o motorista conseguiu achar a rua.

Chegando na rua, simplesmente não achávamos o número do prédio. “Será que me deram um calote e o apartamento não existe?”. Me lembro como ontem da minha figura com duas malas pesadas, uma mochila abarrotada e um casaco enorme, perdida, olhando para todas as direções naquela rua comercial. E a lembrança do cheiro do estrangeiro. E o medo de morrer naquele avião que voltou ao Rio. E tudo o que havia deixado para trás na cidade maravilhosa. Sentei no meio fio e, quando ia começar a chorar, dando o otimismo por perdido, uma boa alma sai da barbearia da qual estava em frente. “Hey, você está procurando um quarto do Airbnb?” “Sim!!!” “Olha, você está no lado West da rua, o endereço que você procura está no East. É alguns blocos naquela direção”. “Thank you, sir!!! Thank you so much for the information!”.

Era a caminhada final. Me permiti até apreciar um pouco o ambiente. Hillcrest era um bairro urbanizado, com muitos bares e pessoas andando na rua. Pas mal. Mas os quarteirões de San Diego podem ser bem longos, e eu carregava muito peso comigo. Duas malas pesadas, uma mochila abarrotada e um casaco enorme.

Contudo, começou a chover e eu não tinha mãos suficientes para abrir uma sombrinha. Aliás, eu tinha uma sombrinha? Acho que sim, provavelmente dentro da mala grande. Não, não, eu não iria abrir a mala na rua para recuperá-la. A decisão razoável foi a que eu tomei — andar mais rápido, tão rápido quanto o peso permitia. Rápido o suficiente para não perceber que o piso era escorregadio e, então, eu cai no chão.

“Nada mais pode acontecer” era uma frase a qual eu, naquele momento, tinha medo. Não obstante, era a única que poderia me fazer levantar. Com a felicidade de saber que ninguém tinha visto a minha queda, contente também de, aparentemente, não ter me machucado muito, levantei. Levantei e puxei as malas. Duas malas pesadas, uma mochila abarrotada e um casaco enorme, que magicamente triplicaram de peso. Mas como? Seria o meu psicológico atuando? Não, era uma simples e jocosa rodinha de mala quebrada. Que-bra-da. Com essa constatação, a chuva apertou ainda mais, e a água começou a formar gotículas nos meus cabelos, que escorriam sobre meus olhos.

“Karina, você é resiliente. Você não tem mais nada a perder, inclusive. Dignidade? Ficou lá no Flamengo. Então puxe esse peso, e ache esse endereço”. Continuei lenta dessa vez e, enfim, encontrei o número 147 E. E de East! Digitei o código do portão, entrei, e constatei que eu tinha ainda dois rols de escada para subir. Subi cada mala. Abri a porta com a chave escondida debaixo do tapete e voilá. Mal podia acreditar.

Esperava encontrar no final da tarde a dona do apartamento (eu havia alugado um quarto na casa), chamada Gene, que pelas fotos junto de seu pai, parecia muito simpática. Só que não. Gene era o homem da foto, e saindo do banho, não esperava encontrar ninguém nem nada do sexo masculino na sala. Tentei esconder a surpresa quando o vi, cumprimentei-o e fui apressada para meu quarto. Não tinha forças naquele momento para descobrir se ele era uma pessoal legal ou não (depois descobri que era). Tranquei a porta e chorei até dormir.”

_ Poxa, Karina, que bad vibes… Retiro o que disse. Você até que está bem, frente a tudo que passou...

_ Pois é, pois é, meu amigo.. Cá estou, meio sorumbática hoje, mas menos que ontem e mais que amanhã.

FIM

PS.: Só escrevo textos ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência! MAS, no caso deste conto específico, 97% do texto de fato aconteceu ;)

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