Cigarros míticos

Karina Rodrigues
Catarse Crônica
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5 min readAug 2, 2021

Fumo uma cigarrilha da República Dominicana, sentada na varanda do quarto alugado em San Diego. Estar em outro país me parece uma loucura, ainda mais nessa casa enorme, de jardim bonito. Mais viagem ainda é me ver fumando novamente, depois de anos sem fazê-lo. A cigarrilha apaga e penso:

“Lara iria me criticar por ter acendido com isqueiro. Fazer o que, se não tinha outro jeito?”

Acendo de novo e puxo a fumaça. Minhas papilas gustativas se abrem por completo, e eu mergulho na ambiência das notas de chocolate amargo, madeira e fumaça. Que gosto familiar…

Entenda, caro leitor, eu não sou a favor do tabagismo. O cheio nas roupas, o ranço nos dedos, o pulmão exposto. O vício. Contudo, é inegável o papel mítico que o danado tem em simbolizar essa mulher que conseguiu marcar minha vida de maneira indelével em um tão curto espaço de tempo.

A Lara surgiu como amizade simbiótica. Nos conhecemos e não nos desgrudamos. Recém chegada no Rio de Janeiro, eu era uma devir-mulher, ainda com muitos traços de menina assustada. Ela, uma mulher feita — ou, ao menos, mais feita que eu –, mineira, cheia de confiança em si e ávida por desbravar a cidade. Seduzir era sua moeda de troca cotidiana, que ia usando quase sem perceber. Enredava a todos — professores, amigos, amantes, atendentes de supermercado… e a mim, que queria ser um pouco como ela, mesmo me sentindo longe disso.

Na banquinha perto da universidade em que fazíamos pós-graduação juntas, ela dizia: “Moço, que dia lindo nesse Ridijanêro! Qual cigarro de palha você tem aí? Só tem Souza Paiol? Aqui no Rio só tem dessa marca, seu moço? É a única que eu encontro. Amiga, vou ter que trazer uns maços de Coyote lá de Beagá. Você precisa experimentar, é uma delícia”.

Eu, que só havia fumado meia dúzia de mentolados nas saídas esporádicas com amigos de minha cidade natal, não me via com outra opção senão a de experimentar. Note que o convite dela não era um convite comum: quando ela falava que era uma delícia, eu sentia que era u-ma-de-lí-ci-a… Ela falava com aqueles olhos diretos e ligeiramente apertados, de sagacidade. Ao mesmo tempo que me causava fascínio, essa intensidade seria também o motivo pelo qual nossa amizade não se alongaria pela vida.

Na primeira vez que fumei um Coyote não senti o efeito. Não sabia tragar. Mesmo não sabendo, passava noites e mais noites com Lara, farreando na terra da malandragem. E eu seguia sustentando meu maço de cigarros de palha, dado por ela, como um misto de ‘sou descolada’ com ‘não sou daqui’, com retrogosto de ‘ando com meus iguais’. Que sabor, e pigarro, deliciosos de pertencimento.

A primeira vez que consegui tragar foi uma surpresa. O paiol, já que não tem filtro, é um murro nos alvéolos, baixando a pressão do sangue quase que instantaneamente. Pensei: “que gostoso… o mundo em suspenso por uns minutinhos, sem muita culpa ou exposição”.

Vale lembrar que o paiol era digno de atenção diferenciada só no Ridijanêro. Para além de ser diferente do que os cariocas costumam fumar, os pouco conhecedores frequentemente o confundiam com maconha, o que gerava uma ainda maior interação com pessoas aleatórias. Lá em Beagá, por sua vez, paiol é quase a única coisa que se fuma. Era óbvio, portanto, que com a Lara o fascínio não se faria só pelo cigarro de palha.

Lembro-me como se fosse ontem de uma tarde de domingo de dia bonito e ligeiramente frio, em que Lara me convidou para ir na casa dela beber café, fumar charuto e ouvir uns vinis do Clube da Esquina. Ela flertava com esses símbolos super masculinos de um jeito primoroso, lambuzando-se ao mesmo tempo em que fazia troça deles, já que ela não economizava na sutileza e sensualidade femininas quando os manejava.

_ Amiga, já fumou charuto?

_ Não, nunca.

_ Então deixa eu te ensinar.

Antes de começar a falar, se levantou da mesa da sala e foi à cozinha, com os pés descalços, pegar mais café para nos servir. Eu não me lembro de ter tomado um café mais preto que aquele, que saía esfumaçante da cafeteira italiana em suas mãos.

_ Não se acende charuto com isqueiro, amiga. O verdadeiro apreciador de charutos sabe que o gás do isqueiro altera substancialmente o sabor. O ideal é acender com um fósforo.

Nesse momento, o disco do Clube da Esquina troca de faixa e começa a tocar Os Povos. Adoro essa música. Bota aí para ouvir antes de continuar a ler.

“ttssh”

Ela risca o fósforo.

Naquele fim de tarde, numa sala mal iluminada por uma lâmpada amarela de baixa voltagem, instalada em uma luminária pendente vermelha, sobre a mesa de madeira maciça escura, ela acende o charuto.

O ambiente todo se perfuma, e eu observo a dança das fumaças sob a iluminação. Ela me entrega o charuto e diz: “Esse você não traga né, sua trouxa”, dando o risinho sarcástico que lhe era costumeiro. Eu rio junto e puxo devagar a fumaça. Naquele momento, café, charuto, mesa e música se misturaram. Fechei os olhos pausadamente, na tentativa de eternizar aquele momento em minha mente.

Saí da casa dela naquele domingo e, na semana seguinte, já havia comprado um jogo pequeno de cigarrilhas. Para quem não sabe, cigarrilha é um charuto bem pequeno, que é geralmente vendido em pacotes de cinco ou seis unidades. A partir daí, ao invés de cigarros de palha eu levava cigarrilhas ou charutos para a noite. Por diversas vezes usei das mesmíssimas estratégias de sedução de Lara em outras pessoas. Um exemplo? Bom, uma das primeiras coisas que eu perguntava aos meus pretendentes quando chegavam à minha casa era:

_ Gosta de charuto? Estou com um Cohiba Behike muito bom aqui.

_ Nunca fumei charuto. Como se faz?

_ Vou te ensinar, deixa só eu fazer um café bem forte para acompanhar.

Ao passar do tempo, minha relação com Lara se desgastou. Eu não dependia mais dela como referência e ela já não tinha mais sua aprendiz. Começamos a nos comportar como competidoras e nos afastamos gradualmente, sem nunca termos dito sequer uma palavra sobre o rompimento.

Parei de fumar como quem esquece a luz acessa em casa ao sair. Despretensiosamente. Nada mais de paiol ou de andar com caixa de fósforo na bolsa.

Até ontem, não é? Porque hoje estou aqui, acendendo cigarrilha com isqueiro. Por que foi mesmo que comprei isso mesmo? Para fumar sozinha? Pensando bem, acho que sei. Com essa depressão, talvez esteja tentando seduzir-me a mim mesma, para aumentara sensação de que essa vida tem mais sentido. Puxo um pouco mais de fumaça. Como será que a Lara está?

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