Ele estava ali, na minha frente

Karina Rodrigues
Catarse Crônica
Published in
3 min readJul 3, 2021

Numa visita minha a São Paulo, cidade onde ele morava, me chamou para almoçar num bistrô intimista com vista para os arranha-céus. Me lembro como se fosse ontem, eu com crachá de congresso sentada à mesa, vendo-o chegar quase como em slow motion.

Alto, cabelos castanhos, suficientemente bonito e extremamente charmoso, meio barrigudinho, ostentava grossa aliança dourada e a leveza de quem parecia estar acostumado às revoadas extraconjugais. Chegava de terno, exalando todo o poder das instituições financeiras para as quais trabalhava, fosse por meio do relógio caro, fosse pelas roupas de alfaiataria italiana, ou pelo jeito de andar que só aqueles familiarizados com o poder possuem. Sabendo de todos os seus dotes, se regozijava pela iminente caça, na qual eu, mera presa, era participante e observadora ao mesmo tempo.

Me cumprimentou com um abraço apertado, aqueles de tronco colado. Chamou o garçom já conhecido e pediu o melhor vinho da casa.

_ Lembra dos nossos tempos de doutorado, Letícia? Você sempre escorregadia comigo, e eu sempre tentando me aproximar… Estou muito feliz que você tenha aceitado meu convite para esse almoço.

_ Bom, eu tinha namorado à época. Você, bem, você sempre foi casado, não é meu amigo?

_ Você sabe que meu casamento acabou… permaneço nele por meu filho. Eu sei da minha escolha, mas não quero passar a vida sem viver. Quero olhar para trás sabendo que eu fiz as coisas que tive vontade. E eu sei que você me quer…

As palavras dele ecoaram em minha mente e me trouxeram milhares de recordações. Durante anos de doutorado, foram inúmeras as oportunidades de aproximação, desde convites para faltar as aulas de disciplinas eletivas, finais de semana em Ubatuba quando a esposa e o filho iam sozinhos visitar os avós maternos da criança, até batidas na porta do quarto de hotel, no meio da madrugada, quando íamos para os mesmos congressos.

Seria compreensível ceder às investidas já que, de fato, ele era um homem demasiado sedutor. Mas nunca o fiz. A verdade é que a sensação do ‘quase’ era muito mais inebriante do que a realização da fantasia. Nesse homem, acabei criando um refúgio amoroso, onde a minha imaginação e minhas projeções poderiam voar soltas, sem risco de ruírem, protegidas por um imperativo moral de não me envolver com pessoas comprometidas e tampouco trair.

Contudo, depois de tantos anos, ele estava ali, na minha frente. Ele me convidou, e eu aceitei. Teria meu inconsciente querido deixar o mundo onírico de lado e, enfim, provar o fruto que eu mesma havia denominado proibido? Declarar-me-ia feminista falida, sucumbindo ao mais tradicional exercício do masculino patriarcal, que é o homem poderoso e endinheirado?

Entre taças de vinho, risadas e toques dele em minhas mãos, ele espirra. Estava com rinite. Comento que a poluição de São Paulo não ajuda os alérgicos. Eis que, enquanto ele pedia a conta e me chamava para ir a um lugar mais reservado, vejo escorrer uma melequinha do nariz dele. Longa, branquinha, grudenta. Ele percebe que algo estava errado, tenta se limpar com um guardanapo, mas ela permanece lá, suspensa, balançando como um pêndulo, até chegarmos no elevador.

Emudeci. Parecia a melequinha uma mensageira importante, e que não era meu dever expressar algo que tirasse dela a mensagem que trazia. Agradeci o convite e, gentilmente, o recusei.

O apetrecho visual me lembrou de que, a despeito de minhas idealizações, ele era apenas vulnerável humano. Não há projeção glamourosa que sobreviva às escatologias do cotidiano.

P.S.: Só escrevo textos ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência! :)

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