Fazer o quê?

Karina Rodrigues
Catarse Crônica
Published in
5 min readOct 2, 2021

No mundo dos solteiros, rotineiramente me deparo com os abismos da comunicação. Eu, dizendo “A”, me deparo com respostas (será que poderiam ser consideradas como tal?) que respondem a “B”. Não me eximo do abismo, o contrário pode acontecer também.

Mas, se eu disse A, de onde vem o B?

Tentativa de comunicação A: ‘Fulano, eu entendo que você esteja ocupado com seus projetos, mas poxa, você me avisou tão tarde que não poderia. Não foi a primeira vez. Esse lance de ‘quando surgir uma brecha’ não dá pra mim, então tome seu tempo e me chame apenas quando você puder marcar um dia e horário certos, que nem seus horários de leitura para a peça. Você não chega atrasado e nem falta sua leitura, não é, garotão? Ok? Beijo.’

No dia seguinte:

Resposta a uma fala B, que nunca foi proferida: ‘Oi sumida! Tô livre agora, de 11h40 a 13h30, faz um café pra mim na sua casa?’ — eu respondo ‘Venha!’. ‘Ah, mas pensando bem, você está livre às 18h30? Vai ser depois do ensaio, teremos mais tempo.’ E às 19h40, a resposta ao B é ‘Poxa, surgiu um imprevisto e não vou poder. Mas vamos tentar amanhã, talvez eu consiga no final da tarde.’

‘A’ tenta se comunicar de novo:

Tentativa de comunicação A: ‘Olha, eu não estou à toa na vida, preciso me programar para fazer as coisas que quero. Logo, não vou marcar de sair com você antes da sua peça estrear.

Resposta a uma fala B, que nunca foi proferida: ‘Eu sei que são 22h, mas estou livre agora, quer fazer algo? Eu sei que você está atarefada, não é mesmo? Mas amanhã é feriado para mim, então para mim rola de encontrar mais tarde hoje’.

Ao receber tal mensagem, olho perplexa para a tela do celular. Com quem o ator está falando? Será comigo, ou com alguma entidade sobre a qual o rapaz projetou minha imagem e minha voz?

Outro caso:

Tentativa de comunicação A: ‘Oi Ciclano, olha, estou dando um tempo desses encontros mediados por aplicativos, logo, quero cancelar aquela ideia de nos conhecermos no próximo final de semana’. E conversa amigável vai e vem, rola um desabafo. ‘Têm me incomodado os excessivos elogios de uma galera que simplesmente ignora mensagens no dia seguinte, como se eu fosse um pedaço de carne. Elogiar tanto pra quê? Não será isso que definirá minha interação com a pessoa. Nisso, comecei a olhar com desconfiança aqueles que me elogiam demais.’

Resposta a uma fala B, que nunca foi proferida, um dia depois: ‘Espero que você não se incomode, mas eu sempre vou te reafirmar e ressaltar o quanto acho você uma pessoa maravilhosa’.

Curioso, não? Depois de eu desmarcar um encontro e dizer que elogios estavam me incomodando, Ciclano aproveita a primeira oportunidade para me dizer que sempre vai me elogiar.

De onde vem a fala B, nunca pronunciada, mas viva e organizadora inconteste dessas interações?

Esses diálogos escancaram autocentramento, estancando a potência de conexão logo em seu início. Ignoram ou desconsideram tentativas claras, translúcidas de comunicação dos desejos, com ações descabidas que continuam como um tanque que passa por cima de árvores, cercas e cadáveres, a despeito do contexto da batalha.

Ao retomar minhas leituras feministas, essenciais na minha construção de saúde mental, relembro-me dessa descrença estrutural masculina no que a mulher comunica, que vem do antigo e muito conhecido excesso de autoconfiança masculino. Afinal, eles sabem mais que nós e agem, inadvertidos, de acordo com essa crença.

A frase final do áudio de ‘desculpas’ do ator, antes de eu o bloquear, foi:

_ Eu não tive essa intenção, mas… fazer o que.

O ‘fazer o que’ saiu resiliente do telefone celular, como sentença de morte, afirmação peremptória. Fiquei com a sensação de que, para ele, não havia como ser diferente. A culpa é da loucura da produção teatral, logo, não há como responsabilizá-lo por inúmeros bolos e enrolações. Ele era uma vítima do contexto de vida dele, e caberia a mim aceitar e acolher a imensa vontade dele de me encontrar, tolhida pelos acasos da vida. Se eu não o fizesse, eu seria irrazoável, uma vez que ele gentilmente havia me explicado todos os B.O.s da produção.

Contudo, sempre há a possibilidade de mudar a frase, torná-la pergunta, independentemente do seguimento dessas relações.

Fazer o quê?

Se as meditações de cunho budista já me ensinaram algo sobre o assunto (que eu, de modo falível, tento praticar) é que se faz necessário: abrir-se para conhecer profundamente seus desejos, já que são eles que vão moldar a parte da comunicação que muitas vezes não conseguimos controlar; ficar curiosa sobre a realidade, sem assumir que já se sabe algo sobre ela; e escutar.

Depois da escuta, compreender que a ação do outro é resultado de um conjunto grande de causas e condições que não necessariamente passam por você, e se passam, não o fazem só por você. Em seguida, deve-se abrir o coração para agir com compaixão, por si e pelo outro.

Aí é que está o pulo do gato: a compaixão nem sempre tem uma forma bondosa, ao contrário do que a maioria pensa. Para quem não conhece, no budismo há uma famosa imagem da deusa da compaixão, a Avalokiteshvara, que tem muitos rostos - uns felizes, outros sérios e outros irados. Sim, ira pode ser sinônimo de compaixão. Escolher qual a melhor forma de agir tem a ver com acessar uma visão maior, de forma a agir da forma mais benéfica, sem julgamento de valor do que essa ação seja.

Avalokiteshvara

Em termos práticos, a real compaixão pode significar reexibir os stories, pedir desculpas pelo block e se reaproximar de alguém. Pode também significar dar um chega pra lá elegante e manter a aparência de amizade. Pode ser ignorar as mensagens da pessoa, dar o block e nunca mais retirá-lo. Pode ser mandar textão. Pode também ser altamente autocompassiva e, para fins educativos, mandar um “enfia seu convite de última hora no rabo, seu arrombado do caralho”.

:)

--

--