Mãe Apocalíptica

Redação para Mídias Digitais
Catorze Trinta Ed.5
7 min readJul 1, 2022

Um retrato da maternidade no ano de 2022

Amaternidade é alvo de investigações e estudos há décadas. Antropólogos, historiadores, sociólogos, psicanalistas e psicólogos escrevem e reescrevem sobre o assunto, dissecando todos os aspectos possíveis da relação entre mães e filhos. Mesmo assim, descrever esse fenômeno e toda sua complexidade, permanece como tarefa impossível.

Na infância somos apresentados à imagem da boa mãe. A mulher deve ser capaz de enormes sacrifícios, entre eles ser amável, tranqüila, compreensiva, terna, equilibrada, acolhedora, feminina em tempo integral. É esperado um ideal, um modelo de mãe perfeita, uma imagem romantizada da maternidade construída ao longo dos últimos séculos, baseada num rígido padrão incapaz de admitir qualquer vestígio de sentimentos ambivalentes nas mães. No entanto, mães não são seres rígidos e as mulheres que se encontram nessa posição experimentam sentimentos contraditórios e inconciliáveis com a imagem idealizada de maternidade ditada pela cultura.

“Não é suficiente apenas ser mãe, elas precisam ser perfeitas.”

  • Elisabeth Badinter. Filósofa e autora do livro “O conflito: a mulher e a mãe”.

Transformações históricas mudaram o papel da mulher na sociedade. Os papéis femininos se alteraram, oferecendo à mulher um novo status e novas exigências. Profissionalização, maternidade e cuidados do lar são algumas das responsabilidades que exigem fisicamente e emocionalmente as mulheres. Assim, a experiência da maternidade sofre influência da imagem criada a partir da visão patriarcal da família e da sociedade, e pela nova imagem e expectativa da posição feminina no mercado de trabalho.

No livro O conflito: a Mulher e a Mãe, a filósofa francesa Elisabeth Badinter comenta : “As mulheres estão sob uma pressão cada vez maior para ter filhos e não é suficiente apenas ser mãe, elas precisam ser perfeitas. Uma mãe perfeita que só amamenta no peito, que fica em casa com os filhos por bastante tempo e que os criam da melhor forma que podem”.

Quando somamos a essas expectativas e cobranças ao cenário atual, vemos que mães têm um desafio único e gigante pela frente.

A exposição “Sempre fomos modernos”, do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), apresenta um olhar crítico sobre a modernidade no qual o atual contexto histórico é visto como a afirmação do fracasso do projeto moderno. As obras que integram a exposição romperam com os padrões do tradicionalismo vigente em suas épocas e nos levam a pensar de formas diferentes os mais diversos tópicos da vida e das identidades individuais e coletivas.

Na sala titulada Vida, somos convidados a visualizar faces da nossa própria existência e da experiência humana a partir de obras que apesar de tratarem de conteúdos familiares, rompem com visões tradicionais e nos levam a enxergar novas dimensões de significado e sentimento.

Mãe Apocalíptica — “Sempre Fomos Modernos”. Camila Moraes, 2022.

Na sala Vida, através de obras como ‘Figuras Humanas — Mãe e Filho’ de Mariza Viana (1951–2005), ‘Madona e o Menino São João” de Angelo Mambriani (1877–1969) e ‘Pietá do Lixo’ de Descartes Gadelha (1943), o imaginário materno é questionado e representado num cenário de dor, miséria e exclusão. A Mãe Apocalíptica cria e cultiva um ser humano enquanto luta contra estereótipos, expectativas e um mundo que não se importa com o seu bem estar ou o de seu filho.

A pandemia, as guerras, o fundamentalismo religioso e político, o racismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia, a destruição ambiental, a colonização, a escassez e o distanciamento, são parte da experiência materna que além de enfrentar tantas adversidades não tem garantido a segurança e felicidade de seus filhos.

Quem é a mãe apocalíptica?

Esta série de ilustrações, inspirada na visão da sala Vida, busca representar este ser complexo e frágil em toda a sua emoção e força através de lentes específicas da experiência materna.

Mãe

Nessa releitura da escultura principal da Sala Vida, a mãe aparece em sua forma imaginada, estereotipada. Afeto, força e resiliência. Uma mulher que vive unicamente para seu filho e que não fraqueja no papel que exerce. Uma farsa. Uma expectativa que jamais será alcançada por pessoas multifacetadas num mundo moderno cheio de armadilhas.

Piedade

Aqui a mãe aparece em sua face de dor e sofrimento. Piedade é a releitura de uma releitura. A obra original, “Pietá” de Michelangelo (1475–1564), retrata Maria segurando o corpo morto de Jesus. A escultura representa os sentimentos de uma mãe frente à perda do filho amado.

Já a releitura de Descartes Gadelha (1943), titulada “Pietá do lixo”, faz parte da coleção “Catadores do Jangurussu”. Na obra Descartes apresenta uma mãe e seu filho num cenário de desespero e desamparo com corpos semi-imprestáveis e esfarrapados pela miséria. A fome, a doença, o abandono e o extremo desamparo modelam de tal forma aqueles seres, que visualmente seus corpos se fundem com o próprio lixo.

Em piedade, a proposta é representar mãe e filho negros e o resultado do racismo e da violência policial. De acordo com o Coalition Solidarité Brésil, em média, 79,1% das pessoas mortas em 2019 durante as intervenções policiais no Brasil, são negras. Da mesma forma, a polícia mata 2,8 vezes mais negros do que brancos e por fim, 65% dos policiais assassinados são negros (embora representem apenas 44,9% da força de trabalho).

Nesse cenário, mães negras enfrentam desafios únicos e estruturais que vão contra a existência dos seus corpos e de seus filhos.

Toque

Desde o nascimento o toque é essencial para a exploração do mundo por uma criança, mas também para estabelecer as relações sociais e o afeto entre indivíduos. Em Toque a proposta é representar a importância do toque físico entre mãe e filho durante o lockdown e a perda do contato com outras pessoas que a mãe sofre com o isolamento.

No episódio “Solidão na maternidade” do podcast Meu Inconsciente Coletivo, a escritora Tati Bernardi e a psicanalista Isabel Tatit discutem as emoções de mães no período pós-parto durante a pandemia. Isabel explica que duas coisas acontecem ao mesmo tempo com a mulher: a solidão e o isolamento. Ao mesmo tempo que é natural e necessário ficar mais próximo do filho, este período é marcado por uma certa indeterminação do indivíduo frente a nova fase na vida e por críticas e expectativas vindas da sociedade. Essas duas forças pressionam mulheres a um isolamento físico com a criança e a sentimentos de distanciamento com pessoas ao seu redor. O toque se transforma então, em ponto central de conexão e sentido entre mãe e filho ao mesmo tempo que é perdido em outras interações sociais.

Mulher

Durante séculos, a maternidade tem sido construída e definida por instituições como a religião, a educação e até mesmo os meios de comunicação. Partindo de uma visão patriarcal da família e da sociedade foi criada uma imagem totalmente positiva, idealizada e sem sombras do que significa ser mãe.

Em Mulher, a mãe já não está nesse pedestal. Ela é múltipla, complexa e, sim, defeituosa. Aqui ela é representada não como entidade ou sobrenatural, mas como humana e falha. Nessa peça a maternidade não define quem a mulher é ou deixa de ser, apenas é mais uma nas múltiplas faces do ser feminino.

Camila Moraes

Fortaleza, 19 de Junho de 2022.

Referências:

Camila Moraes, 25 anos. Designer e ilustradora. Apaixonada por design gráfico, costura, viagens e gatos. Aquela que sempre chega atrasada e sai mais cedo. Contato: camila.moraes.ms@gmail.com

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Redação para Mídias Digitais
Catorze Trinta Ed.5

Perfil da turma da disciplina de Redação para Mídias Digitais 2019.1 do curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC.