Entre o apocalipse e a utopia existe o brasileiro

Redação para Mídias Digitais
Catorze Trinta Ed.5
7 min readJul 1, 2022

Na sala “Novo Mundo”, a exposição “Sempre Fomos Modernos” manifesta a brasilidade em sua mais pura essência.

Ser brasileiro é uma grande e difícil equação com incontáveis variáveis, mas alguém, em algum momento, nos fez acreditar que é uma simples e fácil operação, na qual se soma um pai, uma mãe e alguns outros familiares e então, de repente, ali estamos nós. Por qual motivo isso foi feito? É claro que, dessa forma, é mais difícil lembrar que nossa existência vem de violações de direitos, corpos e espaços, como também vem do roubo de riquezas, culturas e identidades. A sala “Novo Mundo” da exposição “Sempre Fomos Modernos”, em cartaz no Museu de Arte da UFC, Bahia, Angola, Argentina e Ceará se unem para relembrar nosso passado, reafirmar nosso presente e nos fazer refletir sobre o mundo jovem, mas tão velho, no qual vivemos.

Fotografia: Catherine Reis

Atualmente em cartaz no MAUC, a exposição “Sempre Fomos Modernos” propõe um olhar crítico sobre a modernidade de nossa civilização e seus respectivos pilares. Tendo o apocalipse como temática inicial e a utopia como final, a curadoria do museu acaba inserindo a sala “Novo Mundo” entre esses dois extremos. Reunindo artistas de origens diversas, como Carybé (1911–1997), Raimundo Cela (1890–1954), Estrigas e Albano Neves e Sousa (1921–1995), o ambiente traz à tona temas como a colonização, o imperialismo e a miscigenação.

Com forte presença de obras nas quais observa-se personagens de etnias diferentes, é difícil não identificar nossa própria origem dentro desta sala, sendo ela colonizada, colonizadora ou ambas. Antes de qualquer coisa, este ambiente é um espelho para grande parte dos brasileiros que o adentram — que promove reflexão, culpa, angústia, vergonha, revolta — uma gama de sentimentos impossíveis de descrever em palavras e que depende diretamente de sua ascendência familiar e identificação étnica. A cultura afro-brasileira e o viver cearense são protagonistas neste salão. Os jangadeiros se mesclam com realezas africanas, as xilogravuras se encontram com religiões de matriz africana e, dessa forma, a curadoria da exposição fez um retrato do Brasil.

Dessa forma, a sala “Novo Mundo” é, sem qualquer dúvida, uma parada importantíssima para entender o percurso da exposição e, principalmente, a si mesmo, pois entre o fim dos tempos e um grande futuro inalcançável está o brasileiro.

A cultura, a paisagem e o viver cearense

Entre obras de Barbosa Leite (1920–1997), Estrigas e Raimundo Cela (1890–1954) observa-se, nesta sala, a paisagem cearense e a genialidade de cada um desses artistas. Do sertão ao litoral, do vaqueiro ao jangadeiro, a pluralidade do estado nordestino marca presença de forma necessária e crucial no “Novo Mundo”. Neste salão, um imigrante pode admirar com carinho a paisagem e o viver do estado que o acolheu. Um turista, por sua vez, tem a oportunidade de mergulhar na origem do Ceará e do seu povo, levando para casa muita cultura em sua mente e em suas mãos. Já o cearense, imagino que esse tenha um encontro consigo mesmo e com o talento de sua gente.

“A produção de Raimundo Cela permanece isolada, à margem do modernismo e de outros movimentos transformadores nas artes do Brasil. Revela, entretanto, a paisagem e as figuras populares do Ceará, com sensibilidade e inquietação em face das questões sociais de seu tempo. São constantes em sua produção as paisagens litorâneas e as atividades de vaqueiros, pescadores e jangadeiros, pintadas com paleta clara e luminosa.” (Disponível em https://www.escritoriodearte.com/artista/raimundo-cela)

O diálogo entre os artistas cearenses vai muito além das obras que compõem o salão “Novo Mundo”. Estrigas, por exemplo, é autor dos livros “Contribuição ao Reconhecimento de Raimundo Cela”. Dessa forma observa-se, naturalmente, uma harmonia agradável, mas tão plural, nas linguagens artísticas de cada um deles, a qual transcende o espaço que dividem no MAUC. Não só as paisagens se complementam, mas a narrativa e os traços dos autores fazem uma grande contribuição conjunta ao retrato do Brasil proposto nesta sala.

De uma forma única, mas tão real, o cotidiano cearense também se mistura com a afro-brasilidade. Em poucos metros quadrados, a paisagem do sertão divide espaço com cerimônias e figuras negras. Diferente do que alguns pensam, esse é o verdadeiro Ceará: plural e multicultural, casa de indígenas, pretos e brancos, unidos pelo chão cearense que, para muitos, se tornou casa.

Fotografia: Catherine Reis

A afro-brasilidade é a base do novo mundo

Diversos artistas presentes na sala “Novo Mundo” possuem relações próximas com culturas, espiritualidades e religiões de matriz africana, apresentando em suas obras a africanidade e enriquecendo ainda mais o salão. Entretanto, um dos artistas que mais destaca a forte relação histórica e étnica entre Brasil, Portugal e o continente africano é, sem dúvidas, Albano Neves e Sousa (1921–1995).

“Não posso senti-lo estrangeiro sob o sol da Bahia, as cores são idênticas, muitos de nossos hábitos vieram de lá, na beleza das mulheres há um toque de dengue angolano, na força e na esperança dos homens descortino a decisão da gente da África. Neves e Sousa encontra aqui a irmandade dos países que têm em comum, além da língua, alguns bens decisivos de suas culturas nacionais. Não é estrangeiro no Brasil o artista de Angola.” [Jorge Amado (1912–2001)]

Conhecido como “o mais angolano dos pintores portugueses”, o artista retrata não só em telas, mas também em poesias, a beleza intangível da Angola. Na sala “Novo Mundo” pode-se observar obras imponentes de realezas africanas, as quais olham, de cima para baixo, a existência de cada um que adentra aquele ambiente.

Angolano

Ser angolano é meu fado, é meu castigo

Branco eu sou e pois já não consigo

mudar jamais de cor ou condição…

Mas, será que tem cor o coração?

Ser africano não é questão de cor

é sentimento, vocação, talvez amor.

Não é questão nem mesmo de bandeiras

de língua, de costumes ou maneiras…

A questão é de dentro, é sentimento

e nas parecenças de outras terras

longe das disputas e das guerras

encontro na distância esquecimento!

[Neves e Sousa (1921–1995)]

A terra mãe de todas as outras se manifesta de forma a ser exaltada no salão. Além de Neves e Sousa (1921–1995), Carybé (1911–1997) também retrata a negritude em suas obras. Ivany Gomes, por sua vez, exalta a afro-brasilidade em pinturas como “Sua Majestade, a Rainha (Maracatu XIII)”. A Bahia se faz presente nesta sala como em nenhuma outra, reafirmando que é o estado mais negro e africano do Brasil.

De toda forma, tais obras disputam espaço com outras grandes pinturas nas quais observam-se personagens colonizadores. De uma forma quase conflituosa, africanos e ibéricos se encaram através da sala em meio a cenas da nossa história e cotidiano. As belas paisagens litorâneas se perdem em meio aos olhares cruzados e a tensão causada pelo imperialismo selvagem.

Portanto, no salão podemos observar paz e tensão. Um misto de sensações se forma quando nota-se a disputa de espaço que existe naquela sala. Apesar da exaltação e representação cultural, colonizadores ainda aparecem — quase como intrusos — no ambiente. Talvez essa realmente seja a definição do tal novo mundo: para os colonizadores, a utopia; para os colonizados, o apocalipse.

A existência latina-americana

Sem qualquer dúvida, esta sala fala muito sobre o brasileiro, mas antes de tudo fala sobre o ser latino-americano. Permeados por perguntas como “o que é ser eu?” ou “qual minha etnia?”, certidões de nascimento contradizentes e sentimentos amargos, muitos de nós não descobrimos, até hoje, o que é existir no meio da complexidade na qual fomos formados.

Um artista que representa bem este terceiro e último pilar da sala “Novo Mundo” é Carybé. Argentino de pele clara, radicado no Brasil, praticante do candomblé e residente de Salvador, o artista é, acima de tudo, uma manifestação do que é ser latino-americano.

O salão representa toda esta mistura da qual fomos formados e na qual permanecemos até hoje, assim como Carybé. Não existem caixinhas para os latinos-americanos, muito menos para os brasileiros. Somos plurais desde o momento em que nascemos e, como citado, observa-se esta pluralidade de corpos, etnias e origens neste ambiente tão bem pensado.

A américa latina desdobrou a lógica das origens e, a partir da formação de nossos corpos, hoje podemos afirmar que nem todo lusitano é português, nem todo africano nasceu na África e nem todo indígena é o primeiro povo. Somos o acaso, feitos a partir da mais bela certeza, a qual é tão aleatória.

A experiência de um novo mundo

Sem qualquer dúvida, experienciar a genialidade deste salão é algo único. O talento magistral dos artistas e da curadoria supera nossas expectativas e transpassa nossas origens. Como citado, acredito que a experiência que cada um terá na sala “Novo Mundo” é algo extremamente particular. Apesar de ser um retrato geral do que é ser brasileiro, essa discorre sobre algo tão sensível e pessoal: a árvore genealógica de cada um e o que isso influencia em nossas vidas.

Fotografia: Catherine Reis

Por fim, gostaria de reafirmar que nossa existência não é uma simples soma. Não existe coerência em se sentir culpado ou envergonhado para sempre por conta de seus próprios ascendentes. Também de nada serve carregar uma eterna mágoa contra antepassados alheios — ou até mesmo contra os descendentes desses. Quando compreendemos nossas origens e o que elas significam, podemos nos sentir frustrados pelo passado ou pelo presente, pois essa angústia é inerente a existência do brasileiro. Entretanto, não devemos deixar que isso nos intoxique, pois sabemos bem que segregação e ódio, mesmo que contra sua própria origem, nunca foi o caminho. Os que passaram contam histórias. Os que aqui estão vivos fazem a mudança. E é assim que devemos seguir.

Catherine ‘Cara’ Reis é paraense, andarilha e poeta visual. Graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará. Pioneira em fotojornalismo esportivo na Rádio Universitária da UFRN. Além do cotidiano e da vida real, sua linha artística investiga inquietações que transpassam o mundo material e seu próprio ser. Contato: carareis.work@gmail.com

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Perfil da turma da disciplina de Redação para Mídias Digitais 2019.1 do curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC.