John William Waterhouse — Echo and Narcissus (foto: Google Art Project)

O rosto da juventude

Crônica para O Retrato de Dorian Gray

Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras
3 min readJul 22, 2018

--

… Este rosto que ao espelho me enoja, pois eu enxergo a corrupção oculta nele. Só eu tenho acesso ao meu retrato.

Antes que ele fosse pintado, eu era apenas um jovem, cheio de vida, esperanças e vontade de viver o mundo. Foi quando me confrontei com a beleza, o orgulho e o medo. O grande medo de envelhecer, de perder a beleza e a graça, de perder o motivo pelo qual todos — inclusive eu — me notavam e apreciavam.

“Para que serve a vida senão para se gozar a juventude e a beleza?” disse Henry.

Depois que Basílio me mostrou como meu próprio reflexo poderia tranquilamente transformar-se em uma obra de arte que, por sua vez, poderia impressionar o mundo por sua beleza, a vida do jovem que eu era se transfigurou.

Agora este retrato-espelho da minha alma me mostra diariamente a pessoa medonha que fui e herda todos os crimes que cometi. Quem nunca sonhou em ser jovem eternamente? Ilusões. Eu sei que não basta que a beleza fique, pois a alma pode apodrecer. A essência do belo, do encantador, nada mais é do que ilusão.

A sabedoria de um velho numa máscara de juventude é algo verdadeiramente belo. Entretanto, uma alma carregada pela consciência de todos os crimes cometidos não consegue suportar-se, mesmo que esteticamente bela.

Como é possível uma pintura tomar para si todo o fardo dos anos vividos por alguém? Isso não me alivia. É verdade, vivi tudo o que quis viver, fui egoísta, tive quem e o quê eu quis, dediquei minha existência ao prazer e à vaidade. Mas confesso: não foi uma vida feliz mas sim uma vida cheia de momentos isolados de prazer. Só. Nada de aprendizados, nada de sofrimentos.

Hoje, tenho a consciência de um homem maduro — e este retrato — para me torturar sobre os erros cometidos. Quando surgiu aquela ruga? E aquele sorriso perverso nos lábios? De onde surgiu tal expressão e o sangue em minhas mãos? Ninguém mais vê este meu espelho, mas é nisso que eu me tornei? Que imagem repugnante! Talvez eu pudesse continuar sobrevivendo se não fosse este maldito retrato. Quem deu permissão para que ele se tornasse minha consciência?

Quem seria eu se não fosse existisse o retrato de Dorian Gray? Apenas mais um velho cujo viço juvenil foi corroído pela podridão de sua alma, porém visível a todos, misturado à multidão. E talvez, a cada sinal que aparecesse no espelho ao longo dos anos pudesse ter servido de chamado, de reflexão, de possibilidade de redenção. Talvez pudesse ter entendido o sentido vida se tivesse envelhecido, depois de tanto viver.

- Dorian Gray

Escrevi essa crônica após ter lido O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, mais ou menos em 1999. Durante a faculdade, fiz um esforço para ler livros importantes que estavam fora das listas obrigatórias de leitura. Foi uma ótima escolha, que ajudou a formar uma boa base de referências literárias com os clássicos. O Retrato de Dorian Gray é o único romance do autor, publicado originalmente em 1890 e considerado sua obra-prima.

--

--

Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras

Música, filmes, livros, inovação, a vida, o universo e tudo mais. Sou jornalista e trabalho no Banco do Brasil.