De Flash of the Blade e Tempo Perdido

Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras
4 min readJun 30, 2018

Eu demorei a gostar de música. Digo isso porque lembro de meus amigos da escola me falarem das músicas que gostavam e perguntarem se eu gostava e eu não tinha uma resposta imediata. Não ligava muito.

Lembro bem que quando eu tinha uns 10 anos meu irmão — cinco anos mais velho — já tinha vários discos de rock, e costumava ouvir alto quando minha mãe saía de casa e aumentar o volume para provocar os vizinhos. E minha irmã — um ano e meio mais velha —, também tinha uma porção de discos pop e colocava eles diariamente para inventar coreografias. E eu não tinha nenhum interesse específico. Não entendia bem os de heavy metal e me divertia moderadamente com os outros, na onda deles.

Tinha também a influência das músicas da minha mãe. Basicamente clássicos românticos do cinema e novelas, Roberto Carlos e música sertaneja.

As coisas mudaram no início dos anos 90, quando fomos arrebatados pela nova tecnologia do compact disc (vulgo CD). E a minha família, como todas as outras na época, foi montando sua coleção de discos. Quem viveu esse momento se lembra que a ascensão dos CDs foi algo monumental: as Lojas Americanas tinham dezenas de prateleiras e estantes apenas de CD; surgiram lojas que só vendiam CD, outras que trabalhavam também com os usados e até mesmo locadoras. O acesso era muito, muito fácil, a música de todos os tipos, até bandas pouco conhecidas, álbuns importados, tínhamos de tudo.

Bem, foi nessa época efervescente de oferta que eu também passei a escutar música verdadeiramente. Prestava atenção nas letras em português, lia e traduzia o que conseguia das em inglês. As letras passaram a fazer sentido — eu já gostava muito de ler — e o som dos instrumentos, o ritmo, os acordes dos cantores começaram a conversar com meus sentidos.

De alguém que "não ligava" para música fui me tornando alguém que se encontrava com aquilo.

Analisando hoje com mais distância, minhas influências da infância, aliadas a uma iminente rebeldia da adolescência que chegava, me aproximaram do rock. E, como sempre as coisas/pessoas precisavam ser rotuladas, quando me perguntavam eu era roqueira. Eu sempre fui eclética, ouvia de tudo, mas nas bandas de rock eu encontrava as melhores letras, os melhores solos, as maiores verdades. Em pouco tempo, conhecia nomes de bandas, letras de música e álbuns de cabo a rabo.

Lembro bem dos primeiros CDs que eu tive: Ten, o primeiro do Pearl Jam; Automatic for the people, do R.E.M.; Metallica (black album) do Metallica; Dois e Quatro Estações da Legião Urbana; Nevermind do Nirvana…

Por que Flash of the Blade e Tempo Perdido

Eu já ouvia nas rádios e na TV e curtia, mas nessa época a Legião Urbana passou a fazer muito sentido para mim. Não existia nada mais perfeito do que aquelas letras, a sonoridade das palavras, a poesia cantada que fez a cabeça da minha geração. É provável que eu não passasse um dia sem ouvir Legião nessa época.

Embora eu nunca tenha cultivado ídolos (por eles serem pessoas além de sua obra), chorei muito ao ouvir Tempo Perdido pela primeira vez depois que o Renato Russo morreu. Sei lá, aquela voz é importante para mim até hoje.

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

Também foi nesse início dos anos 90 que a música do Iron Maiden, que eu ouvia desde criancinha sem entender nada, ressurgiu na minha timeline. Aquele heavy metal entoado em palavras tão perfeitamente pronunciadas por Bruce Dickinson, e a maestria dos demais componentes da banda fazem parte das minhas memórias base. Eles já tinham produzido até ali os melhores discos da carreira deles e eu ouvi muito todos eles até Fear of the dark.

Quem não conhece pode pré-julgar uma banda que fala da besta e sempre tem um monstro deformado nas capas e, de repente, perder uma oportunidade de de conhecer primores como Flash of the blade, The loneliness of the long distance runner, Afraid to shoot strangers, Still Life e tantas outras, que não tocam nem nas rádios de rock…

You’ll die as you lived
In the flash of a blade
In a corner forgotten by no-one
You lived for the touch
For the feel of the steel
One man, and his honour

(Um parêntese: também por essa época eu estava começando a estudar desenho e me fascinava a arte das capas do Iron, que eram feitas pelo ilustrador Derek Riggs, criador do Eddie (esse ser da imagem ao lado), que se vê em todas elas. Fechando o parêntese: virei fã do Derek também.)

Por que eu escolhi essas músicas do Iron Maiden e da Legião Urbana para o título desse texto? Elas são exemples perfeitos do que quero dizer: hoje, às vésperas dos meus 40 anos, quando ouço essas e muitas outras músicas dessas duas bandas imediatamente eu me sinto em casa, é como uma conexão comigo mesma em essência, volto a ser uma versão menos complexa de mim, livre de incertezas, apenas aquela Andresa de antes, com meus velhos conhecidos cantando nos meus ouvidos e me fazendo lembrar o quanto eu gosto de letras e palavras e música boa.

Muito poucas coisas me trazem essa sensação, que não é só prazer, mas de completude, de pertencimento.

Up the irons!

Urbana legio omnia vincit.

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Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras

Música, filmes, livros, inovação, a vida, o universo e tudo mais. Sou jornalista e trabalho no Banco do Brasil.