Livros, guarda-chuva e amor

Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras
2 min readJul 9, 2018

Um dia precisei pegar ônibus para ir ao trabalho. Tinha previsão de chuva. Nesse dia, me vi me equilibrando com um livro numa mão, um copo de café e um guarda-chuva na outra.

Essa cena até corriqueira em São Paulo me fez divagar para a essência das coisas. Fiquei pensando que naquele momento eu sentia raiva por ter de carregar o guarda-chuva, algo sempre incômodo; mas eu não sentia nada ruim pelo livro ou pelo café… Percebi na hora o fundamento daquela diferença. Era o meu juízo de valor. O livro me traria conforto e distração na viagem, com ele não veria o tempo passar na viagem. O café também me traria conforto e satisfação. Já o pobre guarda-chuva, um utilitário, poderia vir a evitar que eu me molhasse, mas podia até ser que não chovesse, e o que seria um pouco de água nas roupas e no corpo descoberto? A chuva em si não é algo mau, que eu quisesse combater.

Amigos não são um peso, amigos não são utilitários. Assim como amigos, os livros nos transformam, mudam nossa visão de mundo... Livros viram referências e repertório, personagens são como velhos conhecidos, suas escolhas se integram à nossa própria experiência, suas dores são como nossas próprias cicatrizes.

Livros nunca são descartáveis, mesmo que você não mais os possua.

Livros dão uma saudade diferente. Você busca em outros livros a mesma experiência boa que outros te proporcionaram. E essa busca não tem fim.

Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno. — Rubem Alves

Mesmo que fique muito tempo sem ler, ao pegar num livro novamente ou pela primeira vez, a sensação é de velho conhecido, acontece intimamente um pacto de ‘Vamos começar uma jornada juntos? Vamos nos perder em uma história, em um novo conceito, uma nova perspectiva, talvez em um universo paralelo? Vamos rir juntos desse mundo real e desconstrui-lo para — de repente — conseguir remendá-lo depois?’.

(É, guarda-chuva, você não tem a menor chance!)

Refletindo mais profundamente, essa relação acontece em maior escala em nossas vidas de forma muito presente. Fazer escolhas que traduzam sua essência e o aproximem daquilo que você ama não deveria ser um sonho, mas um compromisso consigo mesmo. Permitir que os utilitários, que apenas nos trazem segurança contra algo que um dia pode vir a acontecer, sejam o pilar de nossa existência, nossas prioridades, é dar espaço à raiva, insatisfação e vazio.

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Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras

Música, filmes, livros, inovação, a vida, o universo e tudo mais. Sou jornalista e trabalho no Banco do Brasil.