Vai graxa aí?

Andresa Scucuglia
Celeiro de Palavras
2 min readJul 26, 2018
Photo credit: Gustavo Minas on VisualHunt / CC BY-NC

Já estava se tornando rotina para mim, me esquivar ou usar o ‘faz-de-conta que não é comigo’ com um menino engraxate, insistente e falante, que faz ponto nos arredores de um Café, próximo à Paulista.

Eu, com o sono também rotineiro, às 7h45 da manhã, ouço frases soltas nas conversas rápidas, entre goles de café, misturadas a fragmentos das notícias do dia no jornal da manhã.

Diariamente, o engraxate, que deve ter cerca de 11, 12 anos, mas é franzino, entra no espaço reduzido do Café, perguntando enfaticamente para cada um dos frequentadores apressados (ou impacientes): “vai graxa, freguesa?”, “vai graxa, freguês?”. Com a constante negativa, ele insiste “tá na promoção hoje, ajude um trabalhador”.

Nessa hora de persuasão, a dona do Café começa a advertir “não incomoda a freguesa…”. Todos se condoem, mas concluem consigo mesmos que, afinal, não podem fazer nada, não querem engraxar hoje.

O menino é, definitivamente, um trabalhador. Já me espantei diversas vezes, passando frio na manhã paulista, me encolhendo no meu terninho, enrolada no meu cachecol, ao ver o engraxate de bermuda, chinelo e camiseta regata, com sua caixa pendurada no ombro, sem tremer ou fazer chantagem sentimental… ‘nem parece só uma criança’, penso.

Num desses dias comuns, nada diferente, apenas mais um diálogo solto capturado da mesa ali adiante, mas esse ficou ecoando dentro de mim.

- Vai graxa freguesa?

- Ah, hoje não, estou de bota, olha — disse a freguesa, mostrando a bota cano longo e salto agulha.

- Vixi…, mas dá sim pra engraxar… — disse o menino, analisando seriamente o calçado com o olhar.

- Não…

- Ô, freguesa, ajuda um trabalhador. Tem gente que não gosta de ajudar, vai engraxar lá dentro… — disse, apontando para a galeria, que tem um punhado de engraxates estabelecidos, todos adultos. E continuou — Não é feio trabalhar, eu não to pedindo. Feio é aquelas mulheres que dão dinheiro pra aqueles ‘moleques’ no sinal e não ajudam um trabalhador…

- É mesmo… — disse a mulher, penalizada, mas ainda convencida de que não podia fazer nada.

- É.., eu vejo, tem um monte de mulher que dá dinheiro no sinal. Na hora que a gente oferece (prestar um serviço), ninguém quer — disse, saindo e parando no bar ao lado — Vai graxa, freguês?

Escrevi esse texto em Outubro de 2002.

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Andresa Scucuglia
Andresa Scucuglia

Written by Andresa Scucuglia

Música, filmes, livros, inovação, a vida, o universo e tudo mais. Sou jornalista e trabalho no Banco do Brasil.