A ELIPSE: mais do que uma questão de tempo
Aprendeu que elipse é “passagem do tempo no cinema”? Reveja conceitos, ela pode acontecer sem que o tempo “passe” também
Assim como a literatura e o teatro, o cinema tem o poder de manipular o tempo. Se a literatura tem uma liberdade quase irrestrita de trabalhar com o espaço e o tempo, no entanto, o teatro possui suas limitações que, em comparação com o cinema, são intransponíveis. A grande vantagem do cinema aqui reside, justamente, em uma característica que o diferencia, como já vimos anteriormente: a montagem. É através do corte que o cinema manifesta seu poder de manipular de diferentes formas a passagem do tempo.
À supressão de partes e tempos da ação fílmica para fora do campo, em cinema, chamamos ELIPSE. Quando essa supressão é realizada em um direcionamento ao conteúdo da ação, temos, também, uma íntima relação com o conceito do fora de campo. A grande diferença é que, na elipse, o roteiro nos suprime a ação, enquanto no conceito de FORA DE CAMPO não somos retirados da ação, apenas somos impossibilitados de ver alguma coisa para que nossa mente preencha as lacunas. A ação está acontecendo ali, junto de nós. Nós apenas não vemos. A elipse suprime do tempo do filme essas ações e nós completamos as lacunas com o seguimento do filme.
As elipses são, então, lacunas, espaços vazios, “pequenas ilhotas de liberdade semiótica” que solicitam uma pluralidade de leituras. No universo diegético, é raro que o tempo seja respeitado tal qual o universo afílmico, apesar de que, como veremos a seguir, há exemplos de filmes que são criados para respeitar em sua totalidade o tempo afílmico — e nem é preciso que ele seja um filme construído a partir do uso de plano(s) sequência(s), como é o caso de Festim Diabólico (1948) ou Arca Russa (2002), que naturalmente, desenvolvem sua narrativa em consonância com o nosso tempo fora do filme.
UM EXEMPLO SIMPLES DE ELIPSE então. O cinema costuma cortar da versão final partes da história que não são necessárias ou que deixam o ritmo arrastado. Não é preciso ver tudo o que acontece. Quando cortamos algo do filme e adiantamos o tempo, estamos aplicando uma elipse…
A AÇÃO REAL
John dirige seu carro e estaciona ele em frente ao prédio onde trabalha. Sai do carro, aciona o alarme, dá a volta no carro e sobe, apressado, na calçada. Passa pela porta de entrada, cumprimenta a recepcionista e dirige-se ao elevador. Apesar o botão do elevador, aguarda cerca de um minuto, entra no elevador e aperta o botão do sétimo andar. Depois de 20 segundos, o elevador chega ao andar desejado. Ele sai, dobra à direita no corretor, abre a porta do escritório, cumprimenta sua secretária, atravessa a ante-sala, abre a porta da sala principal, solta a maleta sobre a mesa e senta em sua cadeira, pegando o telefone para fazer uma ligação.A AÇÃO NO FILME (a elipse aplicada)
John dirige seu carro e estaciona ele em frente ao prédio onde trabalha. Sai do carro, aciona o alarme, dá a volta no carro e sobe, apressado, na calçada. Passa pela porta de entrada e desaparece dentro do prédio. A seguir, vemos ele sentado em sua cadeira, com o telefone na mão, no meio de uma ligação
O cinema americano evoluiu aos poucos na arte de usar a elipse para acelerar determinadas ações triviais, porque até metade do século, certos planos — como o stablishment shot — eram considerados essenciais para o publico “não se perder”. Era preciso mostrar um personagem entrando em um prédio, para que o público soubesse que ele estava naquele prédio. A própria evolução do público como espectador — essa relação de mais de um século com os filmes — fez com que determinados movimentos narrativos fossem se tornando dispensáveis na montagem
AS CLASSIFICAÇÕES DAS ELIPSES
Seguindo Martin (A Linguagem Cinematográfica), temos essencialmente três tipos de elipse: a ESTRUTURAL, a DE CONTEÚDO e a TEMPORAL. A mais interessante é, para mim, a elipse estrutural, principalmente porque ela permite entender que elipse não é PASSAGEM DE TEMPO, como ela é comumente conhecida e enunciada. Uma elipse pode acontecer sem que necessariamente você faça o tempo passar.
Por partes, então: a elipse estrutural, primeira das três enunciadas pelo Martin, se divide em três tipos: OBJETIVA, SUBJETIVA e SIMBÓLICA
São as duas primeiras que exemplificam porque dizer que uma elipse significa passagem de tempo é um conceito incompleto — não errado, porque ela PODE ser, e normalmente É, a passagem do tempo, mas porque ela não precisa NECESSARIAMENTE SER ASSIM
Vamos ver o que significa ELIPSE ESTRUTURAL OBJETIVA
Ela ocorre quanto, narrativamente, algo é dissimulado para o espectador. Consiste em negar ao público visualizar determinado acontecimento. Diferente — porém similar — ao conceito de FORA DE CAMPO, a elipse não “vira seu rosto” para outro lado enquanto a ação ocorre, mas simplesmente a corta, passando para o plano, seguinte. Cabe à continuidade narrativa preencher essas lacunas, mas ela (a elipse) surge para que o público faça isso por si próprio (ou para gerar suspense).
Portanto, o tempo não precisa passar: nós podemos simplesmente deixar de acompanhar um acontecimento onde ele está, pelo corte abrupto da sequência de ação, e nos deslocarmos para outro local no mesmo momento. Quando somos privados da resolução do que aconteceu, temos uma supressão de acontecimentos da narrativa. Ficamos no escuro, e o filme vai tratar de nos mostrar, naturalmente, o que aconteceu à medida que os fatos aconteçam.
Confuso?
Tenho um exemplo ótimo, em NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939) (abaixo)
Perto do final do filme, Ringo (John Wayne) se encaminha para um duelo que aparenta ser fatal contra três oponentes. A câmera acompanha ele, de frente, até o momento em que ele se atira ao chão e dispara seu rifle. Nesse momento, há um corte e somos levados NO MESMO INSTANTE para a prostituta apaixonada por ele, interpretada por Claire Trevor, que ouve os tiros e se desespera. Nem nós, nem ela, sabemos o que aconteceu. Alguns instantes depois, um dos oponentes entra caminhando no bar, cambaleia e cai. E a prostituta, lá fora, encontra Ringo, vivo.
Temos uma elipse estrutural objetiva aqui porque ela promove uma lacuna no desenrolar dos acontecimentos, e instantes depois esse lapso de informação é preenchido pelo próprio filme. Mas esse corte não se dá no tempo, já que em nenhum momento somos levados para adiante na narrativa. A elipse, portanto, não faz o tempo passar. Apenas suprime o que aconteceu.
Logo, a melhor definição de elipse ainda é “a supressão de fatos, para o espectador, da narrativa”.
Claro que em muitos filmes — a maioria — isso acontece fazendo o tempo passar. Mas para ser ESTRUTURAL OBJETIVA, ela tem que agir na estrutura da narrativa de forma a promover um impasse em relação aos acontecimentos. Quem monta as peças do quebra-cabeças, logo depois, é o espectador. Isso é ótimo, porque acaba fazendo com que, inconscientemente, o público PARTICIPE do próprio processo de construção da narrativa, em vez de ser apenas um espectador passivo (fiz uma análise sobre como isso é impactante em A LISTA DE SCHINDLER, de Spielberg, que publico em breve. Os filmes de Spielberg, aliás, usam muito o mesmo recurso, como é o caso de PRENDA-ME SE FOR CAPAZ )
Vamos a outro exemplo, dessa vez no tempo, e para vermos que é um recurso natural do cinema, usando um filme mudo.
Em FLESH AND DEVIL (1926) de Clarence Brown, temos um duelo entre um marido traído e o amante da esposa. Vemos os dois saírem do quadro, cada qual indo para um lado, e em seguida, vemos as fumaças dos disparos. A cena desvanece sem que saibamos quem dos dois caiu (eles estão fora do campo). No plano seguinte, vemos a esposa, em close. Lentamente, a câmera se afasta e visualizamos ela vestindo uma roupa preta. Sabemos, por ela estar de luto, que foi o marido quem morreu no duelo.
Em “O ABUTRE” (2014), o personagem de Jake Gyllenhall está obstinado em conseguir dinheiro para comprar equipamento de filmagem. Vemos ele sentado na grama, em um parque, quando ao fundo vemos um homem estacionar uma bicicleta. Gyllenhall coloca os óculos, dá um leve sorriso e temos um corte para um homem, em uma loja de bicicletas. Segundos depois, vemos Gyllenhall andando em uma bicicleta, vendendo ela ao dono da loja. O filme não se preocupa em mostrar ele roubando a bicicleta. Não se preocupa sequer em dizer, explicitamente, que ele quer roubar a bicicleta — algo que seria necessário no cinema clássico americano até os anos 50. Simplesmente ele deixa que nós cheguemos a essa conclusão, aplicando uma elipse objetiva que deixa uma pequena lacuna que é logo respondida pelo próprio filme.
ELIPSE ESTRUTURAL SUBJETIVA
Quando o ponto de escuta de um personagem nos é dado para justificar a elipse do som. Também envolve a dissimulação de algo ao espectador. É subjetiva porque, assim como o personagem, “deixamos de ouvir” o mundo ao redor e nos perdemos em seu fluxo de consciência. Assim, nos são retirados os demais sons. A supressão aqui se dá pela perda do que acontece ao redor do personagem no qual “mergulhamos” em pensamentos. Era mais comum no cinema clássico, para fazer o público entender o que o personagem pensava, como um narrador em primeira pessoa da literatura. Como diz o Martin, “o ponto de ESCUTA de um personagem nos é dado para justificar a elipse do SOM”.
Um bom exemplo é dado pelo próprio Martin: a protagonista de DESENCANTO (1945) não quer ouvir o que a velha matrona à sua frente tem a dizer. Ela praticamente deixa de ouvi-la, viajando em seus pensamentos. Nós acompanhamos ela e nos é retirado, também, ouvir o que a outra mulher tem a dizer.
ELIPSE ESTRUTURAL SIMBÓLICA
Uma classificação que, pelas palavras dúbias do Martin, permitem uma ampliação do que ele próprio teorizou. Segundo ele, a dissimulação de um elemento da ação se reveste, aqui, de uma significação mais profunda. A elipse não este, em alguns casos, no corte, mas na supressão de um elemento na própria ação de forma a fazê-lo adquirir um sentido metafórico, como é o caso dos inimigos ‘invisíveis” que vão matando um a um os soldados de “A Patrulha Perdida”, do John Ford.
Aqui eu adiciono uma possibilidade de simbolismo também na maneira como compreendemos o corte estabelecido na elipse — e de certa forma, uma aproximação de um conceito (A ELIPSE) com uma ferramenta (o MATCH CUT, que é visual). No MATCH CUT nós temos dois planos que são unidos pela aproximação dos frames que compõem o raccord em um sentido que vai além da continuidade. É uma ferramenta de narrativa. Porém, quando esse match cut pode ser carregado por um sentido simbólico que permite uma interpretação, podemos ter na elipse que se constrói, desse momento, um simbolismo. É o tipo de elipse que acaba sendo costumeiramente mais lembrada pelos cinéfilos.
Talvez a mais famosa esteja em 2001 — UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO, a dita “elipse mais longa da história”, que vai do osso jogado pelo homem pré-histórico até o satélite. Ou essa é a ideia mais conhecida, mas Artur Clarke já afirmou que o que parece ser um satélite é uma bomba nuclear que circunda a Terra no espaço — informação que está nos extras da edição especial lançada no Brasil anos atrás). Temos ali um match cut, mas ele é mais que um recurso visual de montagem: a passagem de uma arma pré-histórica (o osso) para uma arma moderna (a bomba nuclear). Há um sentido metafórico aqui na elipse, simbólico: o quanto, realmente, nós evoluímos??
Outros exemplos:
Em “ERA UMA VEZ NO OESTE” (1969) o pistoleiro mata uma familia dona das terras onde deverão passar os trilhos do trem. O tiro final do massacre, na criança mais nova da família, é cortado para um plano que mostra o trem aproximando-se da câmera, ocupando a mesma posição onde antes estava o cano da arma. O tiro fatal é dado para “abrir caminho” para o trem, criando um simbolismo na própria elipse através de um match cut
O mesmo acontece no início de A LISTA DE SCHINDLER quando a fumaça de uma vela de um ritual judaico se transforma, em um corte, na fumaça de um trem nazista (que nós sabemos que será o meio de transporte dos judeus para os campos de concentração).
ELIPSE DE CONTEÚDO
Suprimem algo do espectador motivadas por questões de censura social, especialmente se considerarmos a primeira metade do século XX. Era comum nos filmes da primeira metade do século, em que um beijo era cortado para o “dia seguinte” ou “horas depois”, devido ao
teor sexual envolvido na cena. A censura, portanto, era o principal motivo da existência de uma elipse de conteúdo.
Em RELÍQUIA MACABRA (1941) o beijo cede lugar a um fade in que corta a narrativa para horas depois — somos transportados para o “dia seguinte”, no hall do hotel onde eles estavam à noite. O mesmo acontece em A BESTA HUMANA, de Renoir, em que a noite de amor de dois personagens é escondida do espectador pelo movimento da câmera, que é levada para fora da casa, para a chuva, até que a chuva pare, a luz apareça e nós saibamos que o tempo passou. Renoir ainda faz uma alusão erótica ao momento ao mostrar o cano por onde sai a água.
ELIPSE TEMPORAL
A mais comum, habitual, e a que as pessoas mais pensam quando falamos em elipse. É quando o cineasta diminui o tempo da ação diegética retirando da cena tudo o que não importa, fazendo o filme seguir com mais agilidade sua narrativa. É graças à elipse temporal simples que um filme de duas horas pode ter em seu enredo uma história que se passe durante um dia, meses ou anos. É “tirar o que não precisa ser mostrado” no desenvolvimento da ação da história. Quase todos os filmes simplesmente, aceleram a narrativa removendo partes dispensáveis de forma, hoje, naturais. Em alguns tipos de passagens, como ocorre em boa parte da teledramaturgia brasileira, muitos filmes simplificam com o famoso “X TEMPO DEPOIS” aparecendo na tela. Mas há também maneiras criativas de mostrar a passagem do tempo sem apelar para o didatismo exagerado.
Tanto “INDIANA JONES E A ÚLTIMA CRUZADA” (1989) como “CINEMA PARADISO” (1989) e “CONAN, O BÁRBARO” (1982) fazem uso de elipses temporais criadas de forma semelhante: um elemento em tela transforma-se diante da câmera indicando a passagem do tempo. No primeiro caso, o icônico chapéu do aventureiro. No segundo caso, o rosto do pequeno Toto, escondido pela mão do projecionista Alfredo. No terceiro, vendo o jovem Conan se transformar em um homem em poucos cortes entre planos similares.
Repleto de elipses temporais exemplares, “CIDADÃO KANE” faz passar o tempo e ao mesmo tempo nos expõe a degradação do casamento entre Charles Kane e sua primeira esposa alternando diálogos, figurinos, cenário e conteúdo narrativo usando um ato simples do dia a dia: o jantar, exposto em cortes secos
“UM LUGAR CHAMADO NOTTING HILL” sublinha a passagem de um ano na vida do protagonista em uma elipse temporal configurada em plano sequência: o personagem caminha pela feira do bairro e, no caminho, passa por todas as estações do ano, enquanto alguns personagens surgem repetidas vezes de formas diferentes ( como a mulher grávida no início da cena que encerra a sequência com um bebê no colo).
Em entrevista a Truffaut, Hitchcock perguntou o que é o drama, afinal “senão a vida com as partes chatas cortadas”; O gordinho definiu parte da função da elipse no cinema, um fundamento teorizado e classificado posteriormente. O que importa pra nós não é entender o que ela é, na sua essência (a maioria entende isso desde que tem cinco anos de idade) mas como ela pode ser MAIS do que isso, e como ela pode contribuir para ajudar no desenvolvimento da narrativa, na compreensão de uma ideia e no próprio ato de ver e se envolver com um filme. Montagem, como se vê, é muito mais do que apenas escolher ordem dos planos ou conectar suas partes…