A Noite do Demônio

Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena
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5 min readOct 6, 2021

Jacques Tourneur e sua dissertação visual sobre o medo

Existe medo e horror naquilo que não se pode ver. Naquilo que age e cujos atos não se pode controlar. Naquele que se esconde na escuridão — não apenas real, mas metafórica. Tão amedrontador quanto o poder daquilo que se conhece é qualquer coisa relacionada ao que não conhecemos.

Se muitos filmes contemporâneos — e outros essenciais na história do cinema — se apoiam nessa regra básica do medo, muito disso se deve às lições dos cineastas “contrabandistas” da metade do século, dos quais Jacques Tourneur talvez seja o mais conhecido, principalmente através de sua parceria com o produtor Val Lewton.

“A Morta Viva”: sugestão, trilha, sombras e luz (ou a ausência de…) conduzindo a dúvida entre o misticismo e a ciência

Boa parte dos conceitos acima já haviam sido explorados por Tourneur em A Morta Viva (I Walked with a Zombie, 1943), onde a curiosidade mesclava-se ao medo do desconhecido a partir de rituais vodu, e principalmente em Sangue de Pantera (Cat People, 1942), onde a sugestão promove o medo graças ao trabalho de direção de arte e à edição de som — e a cena em que a protagonista é seguida na rua é um exemplo magnífico de como a montagem e o uso do som podem amplificar a sensação de impotência, sem mencionar a conhecida cena da piscina e seu jogo de sombras e sons. E Tourneur mergulha o espectador, sempre que pode debater sobre o medo, no embate entre fé versus razão, religião versus ciência.

Em A Noite do Demônio (Curse of the Demon, 1957), uma das mais absurdas dissertações visuais sobre o tema, Tourneur opta por um lado nessa disputa — posição que ele, até então, deixava apenas implícita. Ele opta pela fé, pela religião e pelo fantástico.

O diretor põe para escanteio as explicações lógicas, mas consegue de forma brilhante manter essa discussão ao longo de 90 minutos de projeção — já magistral se fôssemos apenas levar em conta o domínio visual e narrativo — em mínimos e pensados enquadramentos, como um simples carro parando em frente a um portão, mas posicionado de forma a deixar visível, sobre ele, a estátua ameaçadora de um cão infernal segurando uma mão decepada que sinaliza para parar.

Perseguição na noite em “Sangue de Pantera”: méritos para a montagem, mas é o uso do som que nos aterroriza. Como não temer aquilo que não se vê, mas mexe com nossa sanidade?

Com apenas 8 minutos de filme, Tourneur assume uma explicitude até então inédita, mas logo trata de nos deixar em dúvida se o mal, que aqui toma rosto, é real ou produto da imaginação. E assim segue, até o desfecho.

Ceticismo é, afinal, ciência”, explica um dos personagens, parte de um grupo chefiado por John Holden (Dana Andrews) que irá investigar as ações do Dr. Julian Karswell , líder de um culto à magias negras que pode ter vitimado um homem e o pesquisador anterior que tentara desmascará-lo. Ceticismo, aqui, é unicamente a ponte que mantém a narrativa de Tourneur no terreno da realidade e oferece o apoio para que o espectador não aceite, unicamente, as manifestações que ele vê em tela.

O mais notável é a dubiedade desse discurso: nós vemos o mal em ação, presenciamos as manifestações conjuradas, percebemos a morte se aproximando, mas ainda assim esperamos para descobrir se tudo é fraude ou realidade. Ceticismo, aqui, é o que explica por que a platéia compra a idéia do embate, apesar de — e aí está a genialidade — saber que a ciência não terá vez.

O psicólogo — haveria profissão melhor ? — interpretado por Dana Andrews acredita ter a resposta para manifestações paranormais: o poder da mente. Não como poder criativo, mas como convencimento. “Não acredito em nada disso, mas sei que alguns realmente acreditam”. Realmente acreditar, ele pensa, é o que torna essas manifestações possíveis para a mente. E é o que o mantém com os pés no chão quando ele passa a ser o alvo das maldições que amedrontam todos.

A antecipação — visual, sonora ou narrativa — constantemente sendo jogada ao público

E como Tourneur é diabólico trabalhando a antecipação. Se antes esconde no escuro a raiz do mal, ele aqui tenta a todo custo mostrá-la, como se a procurássemos. E ele brinca com a possibilidade de realmente encontrarmos.

Há três momentos notáveis: o primeiro, um passeio por uma estrada à noite, em que o farol do carro vasculha as árvores, e elas são ameaçadoras, pela simples sugestão passada ao público de que há algo ali.

O segundo, quando uma frase joga a trama para um patamar de ansiedade e interesse incomuns. “… porque às 22:00 do dia 28 você vai estar morto, o que ainda lhe dá três dias.” A sentença de morte proferida em um tom de voz absolutamente cordial e comum é o que passa a mover o filme, como uma nuvem que cerca todas as ações e envolve a plateia.

O terceiro mostra o poder de trabalhar o suspense próximo pela antecipação. “Eu disse a ele para não ir pelo bosque, mas ele não quis me ouvir…” E a sequência do bosque revela-se, minutos depois, tão boa quanto o início impactante.

São apenas três sequências que podem representar o ápice empírico das sensações de A Noite do Demônio, mas vão além: representam a convergência de todos os esforços de Tourneur em trabalhar a sugestão, o medo e um sadismo cruel na arte de contar uma história — sabidamente em seu terreno favorito, o sobrenatural.

Enclausurado por uma maldição, o caminho de Dana Andrews em “A Noite do Demônio” é um embate constante entre luz e sombras. Como em outros filmes, Tourneur se revela um mestre na arte de usar o cenário e o enquadramento.

É certo que a visão do mal proporcionada por ele, hoje, é menos amedrontadora do que a sugestão de sua existência. Mas estamos falando de 1957 — ironicamente, é quando Tourneur dá as costas à sugestão e nos mostra a face do mal em que ele menos funciona.

Mas não fosse pela visão tourneuriana desse eterno combate entre o que pode ser explicado e o que existe longe das amarras da nossa racionalidade — aqui convertido na mais puro exemplo do que é maléfico — muita gente teria ficado sem norte nas décadas subseqüentes do cinema de horror. Sam Raimi e seu Arrasta-me para o Inferno (Drag Me to Hell, 2009) que o diga

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Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS