Cinema, mais do que teatro
A opinião mais comum a respeito de Um Limite Entre Nós (Fences, 2016) é de que é apenas teatro filmado. Quero defender que ele é justamente o oposto.
Oque define um grande trabalho de direção? O que sustenta alguém dizer que determinada pessoa está ótima na direção, ou que a direção é inspirada, ou é burocrática, como se vê em inúmeras críticas web afora? Como se julga o trabalho de alguém responsável por coordenar o trabalho criativo de dezenas ou centenas de pessoas, e muitas vezes conseguir ou não colocar sua marca pessoal no produto final?
O questionamento vem a partir de vários textos que tenho lido a respeito de Um Limite entre Nós(Fences, 2016), onde duas posições são defendidas com maior ou menor veemência: que a direção de Denzel Washington não é criativa, e que o filme é um mero teatro filmado, uma simples filmagem em locação do que Washington e Davis fizeram — e foram premiados — nos palcos desde 2010.
A intenção aqui é justamente mostrar que, amadurecido como diretor e com total domínio do texto, conhecendo as diferenças entre o palco e o set, Washington está longe de sofrer com falta de criatividade, e que o filme, por suas opções de linguagem, é tudo, menos um mero teatro filmado, que pese uma reconhecida verborragia em excesso e um apoio provavelmente excessivo nos diálogos. Porém, Washington parece reconhecer esse excesso e busca outras formas discursivas que são próprias do cinema. Vou ilustrar essa posição usando dois elementos da linguagem: os cortes usados nas longas cenas de diálogo — há quem sustente que o diretor deveria fazer uso de planos longos — e o uso do cenário para compor uma mise-en-scène que só pode ser fílmica, e que nunca funcionaria em um palco.
Fences vem de um texto original escrito para os palcos, e se há alguma coisa aqui que é feita para fugir da tendência a se fazer um teatro filmado é o brilhante jogo de cortes e enquadramentos usados por Washington, fazendo-se valer, justamente, dos elementos do cenário e da casa para discursar a respeito das relações — e das transformações — dos personagens. Os diversos prints espalhados pelo texto falam melhor do que eu poderia usando apenas de palavras.
Washington e o diretor de fotografia Charlotte Bruus Christensen sabem que o cinema tem uma grande vantagem expressiva em relação ao teatro: o diretor sabe exatamente o que a audiência está vendo em relação às escolhas de enquadramento, cenário, luz, figurino, etc. Afinal, o olhar de toda audiência é o olhar registrado pela câmera, não importa em que parte da sala de cinema você esteja sentado.
Já em um palco, é diferente. Quem senta no meio, ao fundo, tem uma visão diferente tanto dos atores quanto da relação de profundidade e luz em relação àquela pessoa que se senta no canto direito, mais à frente. Não é possível preparar de forma discursiva um movimento ou posicionamento para que todos vejam e interpretem, porque, no teatro, não há como todos verem a mesma coisa.
Sabendo disso, está na mise-en-scène do filme outro elemento que o diferencia totalmente de um mero teatro filmado porque, aqui, o cenário tem importante papel para nos apontar o quanto os personagens estão deslocados, oprimidos ou separados. As imagens abaixo explicam isso:
Personagens acuados dentro do munto construído por eles, separados pelas escolhas feitas pelo centro do mundo deles, justamente o personagem de Washington, pelas cercas invisíveis que vão muito além daquela que ele está construindo no jardim.
Não foram poucas análises que apontaram uma montagem burocrática com excessivos cortes, quando, segundo muitos, o ideal seria apostar em planos longos para dar mais realismo às cenas.
A adoção dos planos longos faria exatamente o que acusam Washington de fazer no filme: o tornariam teatral. Há duas formas de usar planos longos em um filme como esse, com apenas um cenário, basicamente: ou abrindo a câmera, usando uma lente grande angular, para registrar o deslocamento e a encenação dos atores dentro do quadro, sem cortes, e fazendo uso de uma ampla profundidade de campo — e logicamente do cenário com fins discursivos — ou aproximando a câmera, seja com uma grande angular ou com objetivas, o que seria o mais usual — e com uma profundidade de campo reduzida evidenciando os rostos — apostando aí em seu movimento para registrar as diversas partes envolvidas nos diálogos. A segunda opção, convenhamos, tornaria o filme enfadonho, repetitivo e nauseante, afinal, todo ele se apóia no texto. A primeira opção seria o mais próximo, isso sim, de um verdadeiro teatro filmado, enquadrando o “palco” e filmando tudo sem cortes, ainda que viesse a permitir uma encenação elaborada como parte da mise-en-scène.
Entrando, agora, na questão do uso de cortes em meio aos diálogos longos: parece interessar a Washington algo que os palcos oferecem pouco, que é a proximidade da câmera ao rosto, captando as nuances das expressões, as reações e a expressividade dos atores, o que se percebe pelos lentos travellings em direção ao elenco que, volta e meia, o diretor oferece para ressaltar certas passagens do roteiro. E os cortes nos diálogos exploram a dinâmica das relações entre os personagens, dinâmica essa que se modifica aos poucos, desde um diálogo em diferentes enquadramentos entre 3 personagens, amigável, no início, até opções por demonstrar, pelos cortes e pela forma como enquadra os personagens, que a relação simbiótica que existia no início foi dando lugar a diferenças na forma como os personagens se vêem e se relacionam.
Em tempo: um filme com longos diálogos não precisa, obrigatoriamente, evitar o uso de cortes. Ter diálogos longos não tem relação nenhuma com prolongar o enquadramento em quem fala ou cortar, uma vez que o uso do som como ponte entre os enquadramentos não muda em nada o diálogo, só acrescenta o plano da reação ao que se fala. Essa é uma opção criativa, não uma regra.
Fences, que é sim brilhante pelo roteiro e pelos atores, pode ser tudo, menos pouco criativo na direção. Mise-en-scène é uma arte nascida do palco, e aqui longos planos seriam apenas uma longa filmagem das relações no palco. O filme consegue suplantar isso para criar sua própria forma de dialogar.
PS: Aliás, essa dificuldade em observar além do óbvio representado pela história e pelos personagens dita também a escolha do título nacional, que representaria melhor o que o filme parece gritar com sua mise-en-scène se fosse chamado “Limites entre nós”, mesmo sendo ainda horrível como título.