Pode parecer chato e oposto ao prazer de se ver um filme, mas uma vez que se aprenda a reconhecer o uso dos elementos da linguagem e como eles podem melhorar nossas experiência em um filme, compreender o cinema se torna um processo mais fácil e automático

Como ler um filme?

Para complementar a análise fílmica, uma explicação ilustrada de como perceber melhor o que ocorre em diferentes níveis dentro de um filme

Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena
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12 min readOct 21, 2021

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Ao escrever sobre alguns procedimentos relacionados à análise fílmica, como preparação para a análise da trilogia Godfather, deu para perceber que o tema tem muito pano pra manga, seja em termos do que dizem os diferentes autores como, também, para aprofundar alguns conceitos que eu cito de forma breve, já que o artigo se concentra principalmente nos diferentes tipos de repetição que podem ser interpretados. Talvez o que seja mais urgente agora seja aprofundar a parte final do artigo, que resume o procedimento, em si, de olhar para o filme a partir de três níveis — o procedimento com o qual aprendi a analisar filmes e que hoje faço de forma inconsciente, automática, indo até mesmo além dele.

Citei, já, uma grande referência: LENDO AS IMAGENS DO CINEMA, obra que parte das propriedades discursivas da câmera (distância, largura, altura, profundidade, movimento etc) para dividir um filme em três níveis de observação: podemos prestar atenção ao que vemos no nível do PLANO, no nível da SEQUÊNCIA e no nível do FILME. Antes de seguir, pingo nos “is”.

a) O PLANO é a unidade fílmica que se localiza entre dois CORTES. Pode ter menos de um segundo, ou pode ter vários minutos — alguns filmes são compostos de apenas um plano sem cortes, outros emulam esse plano sequência. PLANO é diferente de TAKE ou TOMADA, que são os procedimentos de captação da imagem, a filmagem em si. Um plano como vemos num filme pode ter sido filmado 1, 5, 10 ou 100 vezes enquanto o filme era feito. Ou seja, podem ter sido feitas 1, 5, 10 ou 100 tomadas daquele plano. Apenas uma costuma ir para a edição final. E pode, ainda, ser reduzida: na filmagem, poderia ter 15 segundos, mas apenas 10 ficarem no filme na edição final. Enfim, detalhes. O que importa é que aqui, prestamos atenção basicamente em elementos relacionados à composição e ao que está dentro daquele plano.

Sim, gente como Martin Scorsese desenvolve desde cedo uma facilidade de ler os filmes nas entrelinhas e, como cineasta, aplica todos os os sortilégios possíveis de sua arte em um filme. Melhor para você se conseguir perceber a genialidade de caras como esse

PS: Eu particularmente acrescentaria uma instância anterior, que é a do QUADRO ou FRAME, onde você pode congelar a imagem e observar os elementos relativos apenas à composição, e não como ela se modifica ao longo do plano. Mas eu não sou Laurent Jullier. Seguindo…

b) a SEQUÊNCIA corresponde à unidade de ação de um filme que normalmente estabelece uma unidade narrativa em si. Por muito tempo sustentou-se que o espaço era crucial para delimitar a mudança de uma sequência para outra, mas temos sequências de perseguição, por exemplo, em que o espaço muda constantemente. O que importa para compreender a sequência é que ela encerra em si própria uma unidade narrativa própria. É composta por vários PLANOS — obviamente, então, quando temos uma sequência composta por um só plano longo, temos um plano-sequência. A gente já enumerou 24 planos-sequência memoráveis do cinema aqui na Moviement. Então, em uma sequência com varios planos, podemos avaliar de que forma a montagem contribui para criar um sentido, passar uma ideia, uma sensação ou ampliar os significados do que ocorre no plano.

c) Já o FILME, claro, corresponde a um conjunto de sequências ordenadas segundo uma lógica narrativa e criativa . É na análise dessa lógica que podemos fazer uma leitura do que o filme busca dizer ao espectador e quais aspectos ultrapassam o plano ou a sequência e podem ser vistos como algo que percorre o filme inteiro.

Os autores do livro apontam em cada nível outros elementos ALÉM dos que eu aponto abaixo, alguns os quais eu considero dispensáveis ou extremamente óbvios. Vamos ficar nos que eu considero mais relevantes em cada um dos 3 níveis.

Então, hora de exemplificar.

No nível do plano:

Ao analisar o que acontece no PLANO, o autor aponta alguns elementos que demandam atenção do observador:

1 . O ponto de vista adotado pela câmera;

A maneira como a câmera conta a história tem relação com diferentes aspectos do filme. Tem relação com a narrativa, a focalização, a identificação pretendida pelo diretor na relação entre público e história. O ponto de vista de uma história ser contada pode ser subjetivo — a câmera tomando o lugar de um personagem — ou objetivo, em que observamos a ação, mas mesmo quando temos um ponto de vista objetivo podemos ter uma instância narrativa identificável. Podemos testemunhar apenas o que determinado personagem testemunha ou podemos “navegar” por todos os núcleos de ação do filme. Podemos saber mais, menos ou só o que o protagonista sabe. Aí se misturam conceitos de narrativa com aspectos formais — deu pra ver que o texto acima é só um resumo bem sucinto das possibilidades envolvendo o ponto de vista.

Dois exemplos entre muitos que poderiam abordar aspectos referentes ao ponto de vista. Em O SILÊNCIO DOS INOCENTES, a câmera assume o ponto de vista de Clarice Starling, e ao termos personagens olhando para a câmera, nos encarando, nos sentimos como Clarice e ampliamos nossa identificação com a personagem. Já em ET — O EXTRATERRESTRE, onde não temos esse recurso de subjetividade, temos uma opção de ponto de vista objetivo, mas que constrói um significado a partir da colocação da câmera baixa: vemos o mundo, em ET, do ponto de vista de uma criança, tal qual Elliot e mesmo o ET. O único adulto que vemos, realmente, durante quase todo o filme, é a mãe de Elliot. Isso também identifica um ponto de vista narrativo e amplia nossa identificação com Elliot e o extraterrestre.

2 . A lateralidade e a verticalidade, o que inclui também a angulação de câmera adotada;

Aqui entram em análise regras habituais de composição fotográfica aplicadas no cinema, como a regra dos terços, mas também a forma como essas regras podem ser quebradas com um sentido. Habitualmente, essas regras de composição nos ajudam a colocar personagens no quadro, e quanto mais horizontal for a razão de aspecto, mais discursivo ele tende a ser, seja na lateralidade, seja ao centralizar um personagem, trazendo para ele o peso do domínio da cena e da atenção do espectador.

Na angulação, também, a clássica relação entre um ângulo plongée — de cima para baixo — conotando a ideia de inferioridade e o contra-plongée — de baixo para cima — conotando a ideia de superioridade pode ser, também, distorcida, apesar de ser normalmente significativa no sentido do que se quer dizer. Preste atenção, portanto, nas quebras propostas à normalidade e às regras. Os demais sentidos envolvendo esse item estão relacionados à mise-en-scène e à encenação, o que mostra, também, o quanto a análise depende de conhecer a linguagem e interpretá-la.

LATERALIDADE: mais do que a habitual visão a respeito de centralizar, colocar nos cantos, seguir ou não a regra dos terças, a lateralidade dos elementos pode estar relacionada à mise-en-scène e à encenação dentro do quadro. OS OITO ODIADOS usa totalmente as possibilidades dos 70 mm em que foi filmado para explorar o posicionamento e as relações dos personagens com o cenário.
LATERALIDADE: HOUSE OF CARDS usa os princípios de centralização para representar o mundo em que os personagens habitam e se deslocam. Simetria dos cenários no enquadramento e a presença de personagens em controle no centro do quadro são comuns na série para representar hierarquia e poder.
ANGULAÇÃO: no final de GRANDES OLHOS o personagem de Christoph Waltz, pressionado a ter que fazer o que não sabe, em uma situação de inferioridade, é enfocado em um ângulo plongée, típico nesse tipo de situação. Em uma cena de THE WALKING DEAD onde temos tensão, o público recebe de forma inconsciente a sensação de algo está errado — e dará errado — quando toda a cena é gravada em um ângulo holandês, típico para representar caos, confusão e desequilíbrio. O ângulo adotado pela câmera também é representativo
LATERALIDADE: O DISCURSO DO REI representa o rei, claramente desconfortável ao ter que encarar de frente seu problema com a gagueira, deslocando-o dos enquadramentos normais tanto na lateralidade como na verticalidade, expondo seu desconforto visualmente. O filme apresenta problemas na lógica de uso de outras ferramentas de enquadramento, mas, aqui, é coerente com o estado de espírito do monarca.
VERTICALIDADE: Claramente, os dois amantes são enfocados no que poderia ser um erro de enquadramento vertical, com excesso de espaço sobre eles, se não fosse a presença do quadro que parece assombrar os dois em DESEJOS PROIBIDOS. É o quadro do marido, que parece oprimir o encontro tímido dos dois.

3. A profundidade de campo utilizada;

Aqui temos uma escolha artística que demanda procedimentos técnicos — a definição do tipo de lente a partir das necessidades discursivas do roteiro. Podemos ter uma grande profundidade de campo, usando lentes grande angulares, mostrando tudo em foco e ampliando o campo de visão em termos de largura, ou pouca profundidade de campo, restringindo o campo de visão horizontal ao usar lentes objetivas, e assim desfocando parte do quadro, pedindo que o diretor e o diretor de fotografia decidam onde o foco irá incidir.

POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO: Em SIMPLESMENTE ALICE, a personagem de Julianne Moore começa a sofrer com o Alzheimer. A ausência de foco em torno dela, resultado da pouca profundidade de campo, indica como o mundo em torno dela começa a desaparecer junto com sua lembrança.
POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO: Às vezes, a opção de restringir a profundidade de campo tem a ver com o estilo das relações estabelecidas no filme, e não com um discurso. Em AMOR SEM ESCALAS, mais importante do que o cenário são as relações estabelecidas entre os personagens. É o âmago do filme, em cima do qual ele se desenvolve. A opção, então, é usar uma profundidade de campo reduzida para ampliar os rostos no quadro e, desfocando o fundo, fazemos prestar atenção nos atores, nas expressões e em suas relações.
GRANDE PROFUNDIDADE DE CAMPO: fugindo do exemplo habitual, de Cidadão Kane, mas permanecendo em Orson Welles, a grande profundidade de campo normalmente é usada quando se quer a) dar atenção ao cenário b) ampliar a largura e estabelecer relações dos personagens na lateralidade c) fazer uso de um recurso precioso da mise-en-scène, que é a encenação em profundidade, com diferentes níveis em relação ao primeiro, segundo e até terceiro plano. Repare nessas cenas de A MARCA DA MALDADE como temos coisas acontecendo em primeiro plano e ao fundo, e como, na lateralidade, todos os personagens têm o seu lugar no quadro, sem que outros personagens fiquem na sua frente. Isso é encenação — e a grande profundidade de campo permite isso, sair da planificação normalmente associada ao formato em duas dimensões do quadro.

4. A luz e as cores;

Tanto a iluminação como a maneira que ela influencia nas cores presentes no cenário, nos figurinos ou os filtros usados são significativos e discursivos. Interpretar luz e cor depende, obviamente, de entender a percepção no público desses dois elementos.

ILUMINAÇÃO E COR — Exemplo recorrente: o uso de filtros em TRAFFIC, de Sodderbergh, separa o ambiente frio de Washington, onde o azul predomina, do ambiente quente e perigoso do deserto na fronteira entre México e EUA, onde as cores laranja, vermelho e marrom predominam
ILUMINAÇÃO E COR — Em uma cena em que o uso da trilha também é discursiva, em O PIANO, as cores trazem a sensação de frio — no ambiente exterior — e calor e aconchego — dentro da cabana — quando o personagem de Sam Neill arranca a personagem de Holly Hunter de casa e corta seus dedos. Podemos sentir como ela é tirada da segurança para o frio somente através das cores
ILUMINAÇÃO — Sergio Leone usa supercloses nos olhos dos personagens revelando muito a respeito deles, uma marca de seu estilo. Em ERA UMA VEZ NO OESTE, quando o personagem de Charles Bronson surge na venda, a lamparina que balança em sua frente mostra o quão enigmático ele é: ora vemos seus olhos, ora seus olhos são escondidos pelas sombras.
ILUMINAÇÃO — filmado em P&B, O MENSAGEIRO DO DIABO usa muito bem a iluminação para representar discursos referente à religião, inocência e o perigo que se esconde nas sombras, no embate entre bem e mal
ILUMINAÇÃO: Charles escreve uma declaração de princípios éticos em seu novo jornal. Enquanto ele faz isso, a sombra cobre seu rosto, à medida que ele promete cumprir a declaração. Obviamente, a iluminação nos mostra que, fugindo da luz enquanto promete, Charles é um mentiroso. A iluminação é um recurso narrativo poderoso na obra-prima CIDADÃO KANE
COR — Em EMBRIAGADO DE AMOR, o personagem de Adam Sandler expressa inconscientemente sua solidão e sua frieza de relacionamentos pelo uso constante do azul. A mulher que vai despertá-lo dessa estagnação, representando seu oposto completo, veste justamente uma cor quente… o vermelho

5. Aspectos sonoros envolvidos no plano, como ruídos, música e palavras.

Um elemento que poucos percebem, o som e ignorado porque, no dia a dia, as pessoas tendem a ouvir os mais variados sons e ignorá-los, por estarem acostumados a eles — repare como um bebê, que começa a aprender o mundo, vira a cabeça para qualquer som. É novidade para ele.

No cinema, essa noção de que o som é algo comum e despercebido ajuda a nos passar a sensação de tridimensionalidade. Mas às vezes ele pode ser usado como elemento discursivo, a partir da trilha sonora ou de sons dentro do próprio filme. Prestar atenção já é mais difícil, porque demanda, literalmente, perceber que aquele som está ali.

TRILHA SONORA — em O ABUTRE o personagem de Jake Gyllenhall faz algo condenável moralmente e profissionalmente: move o corpo de um homem, vítima de um acidente, para poder ter imagens melhores para vender para os telejornais. A trilha sonora, nesse instante, é atípica: é uma trilha engrandecedora, que representa o que ele está sentindo, um momento de vitória, totalmente incompatível com o que ele acabou de fazer. Mas é a trilha DO PERSONAGEM. A prova é que ela pára de tocar, abruptamente, quando a polícia e outros cinegrafistas chegam ao local do acidente. A música não pertence a eles.
TRILHA SONORA — Em NÁUFRAGO, a partir do momento em que o personagem de Tom Hanks cai no mar e termina em uma ilha deserta, passamos a ouvir apenas os sons diegéticos do filme, os sons da ilha. A trilha sonora não diegética só existe no início e no fim do filme, quando ele está na civilização.
SOM — Em SNIPER AMERICANO, vemos o protagonista, de volta da guerra, sentando em frente à TV, e ouvimos sons de explosões, gritos e tiros. Nossa primeira impressão é que os sons vêm da TV, mas o movimento de câmera nos coloca atrás dele — COM ELE — e vemos que a TV está desligada. Os sons representam suas lembranças de guerra e deixa claro que ele, apesar de estar em casa, não consegue se desligar do que ocorreu no Afeganistão.
AUSÊNCIA DO SOM — Em SINDICADO DE LADRÕES, o personagem de Marlon Brando faz uma revelação à namorada que vai mudar a relação dos dois. Nós sabemos o que é, por isso o filme opta por não repetir toda a informação. Em vez disso, ouvimos apenas o som dos apitos dos navios perto deles e as bocas dos personagens se movendo, sem som. O som do apito e a reação horrorizada da personagem são muito mais discursivos do que seria o diálogo expositivo

No nível da sequência

Ao analisar o que acontece no nível da SEQUÊNCIA, Jullier e Marie pedem atenção:

a) à montagem;

Especificamente na relação entre os planos, o que inclui atenção a elipses, raccords e aplicação de outras ferramentas técnicas, como é o caso de transições, split screens e outros.

SEQUÊNCIA DE ABERTURA DE “AS HORAS”: uma montagem paralela apresenta comparação e simbolismo, estabelecendo pontos de contato nas histórias das três protagonistas desse filmaço.
O CORTE ENTRE SEQUÊNCIAS: Em GAROTA EXEMPLAR, de David Fincher, um comentário irônico no corte sêco que separa o beijo do casal ao momento em que ele tem amostras de DNA retiradas da boca na investigação do desaparecimento dela
O CORTE ENTRE SEQUÊNCIAS: ao longo de OS INTOCÁVEIS alternamos o bem e o mal, ações de choque de um lado e reações de outro. O lamento pela morte de um lado, a comemoração hipócrita do outro. Esse aspecto da montagem, mais adiante, pode ser percebido como um discurso e acaba possibilitando também uma leitura no nível do filme
ELIPSE SIMBÓLICA — o corte entre duas sequências promove uma elipse que é classificada como ELIPSE SIMBÓLICA em “A LISTA DE SCHINDLER”: a fumaça da vela ao fim da celebração do Shabat judaico, que abre o filme, dá lugar à fumaça do trem que, mais adiante, levará os judeus para os campos de concentração. Spielberg começa seu filme jogando forte com o simbolismo. Ele vai além em diversos outros momentos dessa obra-prima
MONTAGEM PARALELA: uma sequência alternando a celebração de uma festa de casamento e o momento de terror de Hannah, doméstica judia de Amon Goeth em “A LISTA DE SCHINDLER”: o assédio doentio e a surra alternam-se com os beijos das mulheres em Oskar, longe dali. O que se aplica aqui é uma observação no nível da SEQUÊNCIA e dos cortes entre planos ou entre as sequências, e não do que compõe o plano. Numa análise completa, pode-se fazer os dois: analisado o poder da montagem, buscar significados para a iluminação, profundidade, disposição dos personagens ou elementos de mise-en-scène no plano. Repare, então, como temos a LUZ iluminando Oskar ao fundo, enquanto ao fundo de Hannah temos apenas escuridão. Pronto: aplicou-se aqui dois níveis de análise.

b) A cenografia, não apenas num plano específico, mas como ele pode ser discursivo em toda uma sequência;

Entendam que, ao mover a câmera, por exemplo, mudamos a posição também dos objetos ao fundo e de como o cenário se mostra para nós em relação à posição dos personagens. Pode ser visto no nível do PLANO, mas também pode ser analisado no nível da SEQUÊNCIA, uma vez que, tendo cortes, temos também diferentes enquadramentos absorvendo detalhes do cenário de diferentes maneiras.

CENÁRIO DISCURSIVO: Em “SOBERBA’, de Welles, ao filmar os personagens de longe, numa longa profundidade de campo, Welles também os diminui perante um cenário repleto de detalhes, ressaltando o quão pequenos eles podem ser em meio à opulência e à futilidade do modo de vida que escolheram. Ao lado, também, duas imagens de “TRÁGICA OBSESSÃO” de DePalma: perceba como o enquadramento enfatiza os quadros e como eles parecem observar a personagem que explora a nova casa. Eles têm um sentido na narrativa: é como se a casa observasse a sósia da antiga dona desvendando o espaço que antes foi ocupado por outra mulher.
Em SINAIS, uma comparação do quarto de Graham no início e no final do filme permite entendermos o quão profundas são as mudanças interiores pelas quais o personagem passa — e assim entender, também, o arco dramático que ele sofre
Em BELEZA AMERICANA, pequenos detalhes podem dizer muito sobre os personagens, e podem estar no cenário. Do jantar frio no início do filme ao jantar frio na metade do filme, as relações entre os membros da família não mudaram, mas há algo diferente: as rosas no centro da mesa têm relação com um dos motifs do filme e com os momentos particulares vividos pela esposa — que agora tem um amante — e pelo marido — que agora decide aproveitar a vida do seu jeito.

c) às metáforas audiovisuais;

Aqui, prefiro usar o termo METONÍMIA e não metáfora, por achar que, mais do que designar algo pelo nome dado a outra coisa, é mais válido o conceito de usar algo fora do seu contexto normal assumindo um novo significado. Entram, para mim, os conceitos de conotação e denotação: o que o filme mostra e o que ele pode estar querendo dizer. Alegorias se enquadram aqui também, de certa forma. Aí, vale a interpretação: entender além das entrelinhas, ver além do que se mostra. Abrir a mente.

Três construções simbólicas que atravessam sequências. Em GRANDES OLHOS, a personagem se dá conta de como sua arte se tornou o típico produto da era da reprodutibilidade da arte (leiam sobre a Escola de Frankfurt para saber mais) quando está no mercado, e a sequência faz uso de um cenário onde os produtos iguais vendidos em nível industrial a cercam por todos os lados. Em CARRIE, percebemos nas sequências iniciais um constante aprisionamento da personagem, isolada das demais pessoas por grades, janelas e obstáculos, mostrando seu isolamento social. Em ELIZABETH, no momento em que a futura rainha é aprisionada, vemos ela ser conduzida, ao longo de toda a sequência, por inúmeras janelas em formato de cruz, relembrando a motivação religiosa por trás de sua prisão: ela é protestante, ameaçando um estado católico por estar na linha sucessória da rainha doente.
Se em GAME OF THRONES a ideia de Daenerys ser a libertadora é trabalhada de maneira constante pela diferença entre seu figurino e seu cabelo com um ambiente sem cor, como se ela representasse a luz, em um filme como A SEPARAÇÃO o tema do filme transparece quando, em diversas sequências, já começamos a perceber os personagens da família separados, numa alusão ao tema e ao próprio título do filme. Em HALLOWEEN as estratégias de enquadramento, corte e posicionamento da câmera nos fazem ter a impressão constante de estarmos sendo vigiados.
Ao cortar da imagem de Stephen Hawking caído no chão, em A TEORIA DE TUDO, somos arremessados para longe, e visualizamos o personagem percebendo a presença de duas cruzes: uma no chão, sobre a qual ele parece estar sendo crucificado, e outra na janela, acima de toda a cena. Transparece, aqui, um dos temas do filme: a disputa entre CIÊNCIA e RELIGIÃO, a sub-trama do cientista ateu e sua esposa católica.

No nível do filme

Ao analisar o que acontece no nível do FILME, os autores enfatizam dois elementos a serem levados em conta . O primeiro deles, relacionado a gêneros, também se relaciona a estilos, ao uso de estratégias narrativas típicas de gêneros ou à sua desconstrução. Mas acho mais interessante enfatizar aqui outro ponto:

Distribuição do saber

Uma visão ampla das relações entre as sequências, o tema, elementos narrativos que permitem uma compreensão maior. No nosso caso, a distribuição do saber se estende para além do filme em si e abrange toda a trilogia.

Em SELMA, acontece o que a princípio poderiam ser erros de enquadramento: os personagens têm espaço sobrando em suas costas, e não à sua frente, como seria o habitual. Ao longo do filme, esse tratamento permite a leitura de como Luther King e seus colegas sentem-se deslocados e pressionados.
Voltar para casa? A trama principal de GRAVIDADE pode ser sobre isso, porém ao longo do filme vamos absorvendo uma série de indícios que nos permitem fazer uma leitura que vá além dessa trama básica. A distribução do saber ao longo do filme nos permite entender que a trama também fala sobre RENASCIMENTO da personagem, pela forma como a percebemos em posição fetal na cápsula que é sua única fonte de vida no espaço, e pela forma como ela precisa re-aprender a caminhar, quando finalmente consegue colocar os pés no chão.
Leituras feitas para além de planos e sequências: perceber como ALIENS trabalha o instinto materno de Ripley, que depois de hibernar meio século no espaço fica sabendo que a filha morreu, já idosa; perceber como QUE HORAS ELA VOLTA nos coloca na posição de ver o mundo pelos olhos de VAL, ou seja, a partir da cozinha e da posição de empregada; e perceber como O SILÊNCIO DOS INOCENTES trabalha a dificuldade de Clarice se provar competente em um mundo governado e antagonizado por homens. São três exemplos de como essas percepções surgem no nível do FILME para quem tem o olhar atento à forma como os sinais são distribuídos ao longo do filme.

Haveria centenas de exemplos para ampliar cada um desses níveis, ou talvez exemplos melhores e mais abrangentes, mas espero que agora tenha ficado mais claro como conseguir ler um filme a partir dos níveis em que o decompomos. Isso, claro, a partir de uma visão, a de Laurent Jullier.

Como mencionei na postagem anterior, há diversos outros teóricos que apontam outras formas — mas isso, claro, pode ficar para outro momento. Acredito que a forma como vemos aqui seja uma das mais simples para pelo menos COMEÇAR a entender a análise fílmica.

Bora ver filmes com um olhar mais crítico, então!

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Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS