Como ler um filme?
Para complementar a análise fílmica, uma explicação ilustrada de como perceber melhor o que ocorre em diferentes níveis dentro de um filme
Ao escrever sobre alguns procedimentos relacionados à análise fílmica, como preparação para a análise da trilogia Godfather, deu para perceber que o tema tem muito pano pra manga, seja em termos do que dizem os diferentes autores como, também, para aprofundar alguns conceitos que eu cito de forma breve, já que o artigo se concentra principalmente nos diferentes tipos de repetição que podem ser interpretados. Talvez o que seja mais urgente agora seja aprofundar a parte final do artigo, que resume o procedimento, em si, de olhar para o filme a partir de três níveis — o procedimento com o qual aprendi a analisar filmes e que hoje faço de forma inconsciente, automática, indo até mesmo além dele.
Citei, já, uma grande referência: LENDO AS IMAGENS DO CINEMA, obra que parte das propriedades discursivas da câmera (distância, largura, altura, profundidade, movimento etc) para dividir um filme em três níveis de observação: podemos prestar atenção ao que vemos no nível do PLANO, no nível da SEQUÊNCIA e no nível do FILME. Antes de seguir, pingo nos “is”.
a) O PLANO é a unidade fílmica que se localiza entre dois CORTES. Pode ter menos de um segundo, ou pode ter vários minutos — alguns filmes são compostos de apenas um plano sem cortes, outros emulam esse plano sequência. PLANO é diferente de TAKE ou TOMADA, que são os procedimentos de captação da imagem, a filmagem em si. Um plano como vemos num filme pode ter sido filmado 1, 5, 10 ou 100 vezes enquanto o filme era feito. Ou seja, podem ter sido feitas 1, 5, 10 ou 100 tomadas daquele plano. Apenas uma costuma ir para a edição final. E pode, ainda, ser reduzida: na filmagem, poderia ter 15 segundos, mas apenas 10 ficarem no filme na edição final. Enfim, detalhes. O que importa é que aqui, prestamos atenção basicamente em elementos relacionados à composição e ao que está dentro daquele plano.
PS: Eu particularmente acrescentaria uma instância anterior, que é a do QUADRO ou FRAME, onde você pode congelar a imagem e observar os elementos relativos apenas à composição, e não como ela se modifica ao longo do plano. Mas eu não sou Laurent Jullier. Seguindo…
b) a SEQUÊNCIA corresponde à unidade de ação de um filme que normalmente estabelece uma unidade narrativa em si. Por muito tempo sustentou-se que o espaço era crucial para delimitar a mudança de uma sequência para outra, mas temos sequências de perseguição, por exemplo, em que o espaço muda constantemente. O que importa para compreender a sequência é que ela encerra em si própria uma unidade narrativa própria. É composta por vários PLANOS — obviamente, então, quando temos uma sequência composta por um só plano longo, temos um plano-sequência. A gente já enumerou 24 planos-sequência memoráveis do cinema aqui na Moviement. Então, em uma sequência com varios planos, podemos avaliar de que forma a montagem contribui para criar um sentido, passar uma ideia, uma sensação ou ampliar os significados do que ocorre no plano.
c) Já o FILME, claro, corresponde a um conjunto de sequências ordenadas segundo uma lógica narrativa e criativa . É na análise dessa lógica que podemos fazer uma leitura do que o filme busca dizer ao espectador e quais aspectos ultrapassam o plano ou a sequência e podem ser vistos como algo que percorre o filme inteiro.
Os autores do livro apontam em cada nível outros elementos ALÉM dos que eu aponto abaixo, alguns os quais eu considero dispensáveis ou extremamente óbvios. Vamos ficar nos que eu considero mais relevantes em cada um dos 3 níveis.
Então, hora de exemplificar.
No nível do plano:
Ao analisar o que acontece no PLANO, o autor aponta alguns elementos que demandam atenção do observador:
1 . O ponto de vista adotado pela câmera;
A maneira como a câmera conta a história tem relação com diferentes aspectos do filme. Tem relação com a narrativa, a focalização, a identificação pretendida pelo diretor na relação entre público e história. O ponto de vista de uma história ser contada pode ser subjetivo — a câmera tomando o lugar de um personagem — ou objetivo, em que observamos a ação, mas mesmo quando temos um ponto de vista objetivo podemos ter uma instância narrativa identificável. Podemos testemunhar apenas o que determinado personagem testemunha ou podemos “navegar” por todos os núcleos de ação do filme. Podemos saber mais, menos ou só o que o protagonista sabe. Aí se misturam conceitos de narrativa com aspectos formais — deu pra ver que o texto acima é só um resumo bem sucinto das possibilidades envolvendo o ponto de vista.
2 . A lateralidade e a verticalidade, o que inclui também a angulação de câmera adotada;
Aqui entram em análise regras habituais de composição fotográfica aplicadas no cinema, como a regra dos terços, mas também a forma como essas regras podem ser quebradas com um sentido. Habitualmente, essas regras de composição nos ajudam a colocar personagens no quadro, e quanto mais horizontal for a razão de aspecto, mais discursivo ele tende a ser, seja na lateralidade, seja ao centralizar um personagem, trazendo para ele o peso do domínio da cena e da atenção do espectador.
Na angulação, também, a clássica relação entre um ângulo plongée — de cima para baixo — conotando a ideia de inferioridade e o contra-plongée — de baixo para cima — conotando a ideia de superioridade pode ser, também, distorcida, apesar de ser normalmente significativa no sentido do que se quer dizer. Preste atenção, portanto, nas quebras propostas à normalidade e às regras. Os demais sentidos envolvendo esse item estão relacionados à mise-en-scène e à encenação, o que mostra, também, o quanto a análise depende de conhecer a linguagem e interpretá-la.
3. A profundidade de campo utilizada;
Aqui temos uma escolha artística que demanda procedimentos técnicos — a definição do tipo de lente a partir das necessidades discursivas do roteiro. Podemos ter uma grande profundidade de campo, usando lentes grande angulares, mostrando tudo em foco e ampliando o campo de visão em termos de largura, ou pouca profundidade de campo, restringindo o campo de visão horizontal ao usar lentes objetivas, e assim desfocando parte do quadro, pedindo que o diretor e o diretor de fotografia decidam onde o foco irá incidir.
4. A luz e as cores;
Tanto a iluminação como a maneira que ela influencia nas cores presentes no cenário, nos figurinos ou os filtros usados são significativos e discursivos. Interpretar luz e cor depende, obviamente, de entender a percepção no público desses dois elementos.
5. Aspectos sonoros envolvidos no plano, como ruídos, música e palavras.
Um elemento que poucos percebem, o som e ignorado porque, no dia a dia, as pessoas tendem a ouvir os mais variados sons e ignorá-los, por estarem acostumados a eles — repare como um bebê, que começa a aprender o mundo, vira a cabeça para qualquer som. É novidade para ele.
No cinema, essa noção de que o som é algo comum e despercebido ajuda a nos passar a sensação de tridimensionalidade. Mas às vezes ele pode ser usado como elemento discursivo, a partir da trilha sonora ou de sons dentro do próprio filme. Prestar atenção já é mais difícil, porque demanda, literalmente, perceber que aquele som está ali.
No nível da sequência
Ao analisar o que acontece no nível da SEQUÊNCIA, Jullier e Marie pedem atenção:
a) à montagem;
Especificamente na relação entre os planos, o que inclui atenção a elipses, raccords e aplicação de outras ferramentas técnicas, como é o caso de transições, split screens e outros.
b) A cenografia, não apenas num plano específico, mas como ele pode ser discursivo em toda uma sequência;
Entendam que, ao mover a câmera, por exemplo, mudamos a posição também dos objetos ao fundo e de como o cenário se mostra para nós em relação à posição dos personagens. Pode ser visto no nível do PLANO, mas também pode ser analisado no nível da SEQUÊNCIA, uma vez que, tendo cortes, temos também diferentes enquadramentos absorvendo detalhes do cenário de diferentes maneiras.
c) às metáforas audiovisuais;
Aqui, prefiro usar o termo METONÍMIA e não metáfora, por achar que, mais do que designar algo pelo nome dado a outra coisa, é mais válido o conceito de usar algo fora do seu contexto normal assumindo um novo significado. Entram, para mim, os conceitos de conotação e denotação: o que o filme mostra e o que ele pode estar querendo dizer. Alegorias se enquadram aqui também, de certa forma. Aí, vale a interpretação: entender além das entrelinhas, ver além do que se mostra. Abrir a mente.
No nível do filme
Ao analisar o que acontece no nível do FILME, os autores enfatizam dois elementos a serem levados em conta . O primeiro deles, relacionado a gêneros, também se relaciona a estilos, ao uso de estratégias narrativas típicas de gêneros ou à sua desconstrução. Mas acho mais interessante enfatizar aqui outro ponto:
Distribuição do saber
Uma visão ampla das relações entre as sequências, o tema, elementos narrativos que permitem uma compreensão maior. No nosso caso, a distribuição do saber se estende para além do filme em si e abrange toda a trilogia.
Haveria centenas de exemplos para ampliar cada um desses níveis, ou talvez exemplos melhores e mais abrangentes, mas espero que agora tenha ficado mais claro como conseguir ler um filme a partir dos níveis em que o decompomos. Isso, claro, a partir de uma visão, a de Laurent Jullier.
Como mencionei na postagem anterior, há diversos outros teóricos que apontam outras formas — mas isso, claro, pode ficar para outro momento. Acredito que a forma como vemos aqui seja uma das mais simples para pelo menos COMEÇAR a entender a análise fílmica.
Bora ver filmes com um olhar mais crítico, então!