GÊNEROS — O WESTERN (1) — Era uma vez a oeste do Mississipi…

Um dos mais incompreendidos e injustiçados gêneros, o WESTERN é muito mais do que simples “bangue-bangue”. Por ele, já desfilaram os maiores diretores norte-americanos em tramas que resumem a própria complexidade do cinema

Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena
11 min readOct 7, 2021

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Os pioneiros, as caravanas, a atmosfera do rancho, a solidão do cowboy. A tensão no saloon, a abertura das trilhas para o transporte de gado, o êxodo dos mórmons. A diligência em disparada, o correio (Wells Fargo, Pony Express), a estrada de ferro (Union Pacific) e o telégrafo (Western Union). Apaches, Cheyennes, Sioux, Comanches e a trilha das lágrimas da nação Cherokee. Os mineiros da Califórnia, Nevada, Alaska e os caçadores de búfalos. O forte — posto avançado de fronteira — a cavalaria, os que desafiavam a lei e os que a faziam valer à base da bala. O Colt 45 no coldre e a Winchester 73 a tiracolo, o inseparável cavalo e as disputas por terra…

O velho e inóspito oeste americano da segunda metade do século XIX. Metade de um país esperando para ser mapeado, colonizado e desbravado em um movimento massivo de centenas de milhares de colonos, comerciantes, mineradores e vaqueiros, conduzido por um discurso que enaltecia o espírito americano de possuir e trazer o progresso para uma terra dominada pelo desconhecido.

Poucos gêneros sofrem tanto preconceito quanto o western, que aqui no Brasil, a partir da derivação “far west”, ganhou a alcunha faroeste. A maior prova do reducionismo com que ele é visto está em seu apelido popular: bangue bangue. Afinal, para a grande maioria, o gênero só apresenta isso mesmo: tiros, o conflito entre lados opostos e uma simplificação extrema de suas tramas e possibilidades narrativas.

Reducionismo? Com certeza. Dos mais injustos, aliás.

Não foram poucos os diretores e teóricos que enalteceram o western como um dos mais completos gêneros do cinema, Glauber Rocha e André Bazin entre eles. Quantos gêneros conseguem, aliás, apenas em suas derivações, reunir classificações de teóricos conceituados como western clássico, psicológico e neo-western, ou western formalista, revisionista, anti-mítico e clássico.

A própria abundância de classificações já demonstra o quanto seus filmes estão longe de se alinharem em torno de simplificações narrativas e temáticas, ainda que orbitem em torno das mesmas características — algo essencial, aliás, para defini-los como parte de um mesmo gênero, como veremos em outro momento. E essas características vão além de contarem histórias situadas a oeste do Rio Mississipi entre 1848 e o final do século XIX, uma das habituais formas de situar as tramas do gênero — até porque ele nos trouxe histórias de força ambientadas antes da corrida do ouro ou já no século XX.

O racismo que percorre cada frame de RASTROS DE ÓDIO, mesmo aquele tratado com humor negro, é proposital e necessário para ampliar a compreensão do quão sombrio é o personagem vivido por John Wayne na obra-prima de Ford.

Vejam:

Um estudo de classes dentro de uma pequena diligência; a figura mítica do herói ideal que surge do nada e para o nada ruma quando cumpre seu destino; a filha em conflito mortal com o pai; as lutas entre famílias numa versão adaptada dos shakesperianos Montecchio e Capuletto. O ex-soldado disposto a sacrificar a sobrinha por força de seu ódio racista; o homem disposto a matar o irmão adotivo em uma vingança familiar; o xerife abandonado por todos numa metáfora ao Macartismo; pai e filho adotivo em uma jornada destinada a acabar em uma luta de vida e morte; o pistoleiro mais rápido do oeste, depressivo, cansado de pôr a prova o seu talento sempre que um novo candidato busca tomar sua posição, que não passa de um título sem bônus, apenas ônus. A culpa carregada por uma comunidade após matar um inocente; o colono sem domínio de armas que abraça a causa de levar o mais perigoso dos bandidos para a cadeia para salvar da fome a sua família; os velhos pistoleiros que, em busca de seu último assalto, descobrem viver num tempo em que eles não têm mais lugar.

Quem pode dizer que histórias como as citadas acima são simplistas? Eles, no entanto, percorrem os temas, cenários, iconografias e características do western desde os anos 30, mostrando que o gênero é tudo, menos um simples “bangue bangue”.

O legado do tempo, no fundo, fez com que na relação entre forma e conteúdo, fosse a primeira a eclipsar o segundo, porque é ela, a forma, que o público mais percebe, identifica e demarca. Fato é que, como diz Thomas Schatz, estudioso das questões de gênero, que “no western, o conflito essencial entre civilização e selvageria é expressado por uma variedade ampla de oposições.” Pela necessidade entre essas oposições — o civilizado e o selvagem, o bom e o mau, a lei e o crime, o desbravador e as dificuldades — é que, inevitavelmente, o conflito se estabelece e marca formalmente o gênero, apesar de que, na realidade, eles foram bem menos frequentes do que o cinema demonstra, como explica A.C. Gomes de Matos em uma obra essencial, “Publique-se a lenda: a história do western.”

A GRANDE MARCHA PARA O OESTE

A tela American Progress (1872), de John Gast, exemplifica os valores expressos pela ideia do Destino Manifesto. Columbia, representando e protegendo os colonos, avança sobre o oeste, trazendo atrás de si o progresso — o telégrafo e o trem — e os colonos, e empurrando no seu avanço os índios e animais, representando a natureza prestes a ser conquistada.

Se há uma particularidade do gênero, é o fato de que, quando ele surgiu no cinema, antes mesmo da própria noção de gênero no cinema ser definida, muitas de suas principais características ainda podiam ser verificadas in loco.

Se hoje ele é apontado como uma visão ligada a um passado específico, na época dos primeiros filmes, ainda documentais, da década de 1890, era uma visão romantizada de algo ainda existente. Bandidos como Jesse James e Billy the Kid haviam morrido pouco mais de uma década antes, e outros personagens eram vivos.

John Ford, por exemplo, gabava-se de ter ouvido da boca do próprio Wyatt Earp, falecido em 1929, a história lendária que ele reconta em “Paixão de Fortes”. A própria ideia do que é western trazia consigo uma concepção temporal que ambientava suas histórias entre os anos de 1869 e 1889, mas esse conceito é raso. Há histórias ambientadas antes disso, e antes até de outro marco temporal, o ano de 1848, marco da grande corrida do ouro que levou milhares de aventureiros da sorte a atravessar o Rio Mississipi, bem como temos westerns memoráveis ambientados até mesmo no século XXI.

Emigrantes Cruzando as Planícies. Gravura de 1869, guardada na Biblioteca de Newberry em Chicago, apresenta o oeste desconhecido como uma terra prometida.

Como foi de praxe nos primeiros anos do cinema narrativo, a grande motivação e inspiração para os primeiros filmes do gênero foram histórias oriundas da literatura, principalmente contos populares que já haviam criado na cultura popular americana o imaginário do oeste selvagem e inexplorado.

Geograficamente, o oeste é demarcado pelo território localizado a oeste do Rio Mississipi até o Oceano Pacífico, tendo como limites o Rio Grande, ao sul, e a fronteira com o Canadá e os Montes Apalaches, ao norte. Em torno do processo de colonização flutuam definições referentes à religião, ao expansionismo, à idéia de “destino-manifesto” que até hoje guia o país e faz parte da própria cultura dos colonos que atravessaram o Oceano Atlântico para dominar o norte da América a partir do século XVI.

Esse processo, que em determinado momento foi oficialmente nomeado de “Marcha para o Oeste”, foi influenciado por fatores tão distintos como fronteiras geográficas, pela política norte-americana e até mesmo por fatores aparentemente distantes, como crises na Europa.

“O western é o sangue básico do americano, sua cultura popular, sua formação étnica, religiosa no que ele possui de indevassável.[…] No western está um momento de instabilidade cultural. A terra se forma e nela heróis e bandidos se fazem bons e maus na luta por construir uma nação. Desta temática, rica em múltiplos aspectos, o cinema americano extraiu até a saturação atual o que de humano sobrou do massacre dos índios e da escravidão negra.”
GLAUBER ROCHA — O Século do Cinema

A expressão Destino Manifesto, segundo Marise Olímpio e Jorge Henrique Maia, foi primeiramente utilizada por John L. O’Sullivan, num artigo escrito em 1839, mas só publicado em 1845, dando nome a um pensamento expansionista defendido amplamente pelo presidente Andrew Jackson.

Estima-se que mais de 300 mil pessoas rumaram para o oeste americano por volta de 1850, motivados pela promessa de uma nova vida ancorada em uma vasta extensão de terra a ser arrendada ou da busca por ouro. Junto a essa população de mineiros e colonos, surgiram também comerciantes, que cobravam preços caríssimos pelos raros produtos que comercializavam, agentes do governo e, inevitavelmente, os ladrões, muitos deles surgidos a partir da inevitável pobreza advinda da falta de oportunidades e fortuna para a grande maioria.

Junto a isso, havia os obstáculos geográficos da própria região e os índios, habitantes naturais de toda aquela área, num inevitável choque de culturas que acabou com as dezenas de diferentes tribos que habitavam esses estados.

Across the Continent, de Francis Palmer, aborda a partida dos colonos para desbravarem o território após o Rio Mississipi. A estrada de ferro que desaparece no horizonte vazio representa essa incursão em direção ao desconhecido. Fort Laramie, de Alfred Jacob Miller, expõe o choque no encontro de duas culturas, ao mostrar a fortificação avançada do exército em meio a território indígena.

O PRINCÍPIO NO CINEMA

Assim como há um consenso popularizado de que os irmãos Lumière inventaram o cinema — e há provas de que os Lumière apenas popularizaram o que outros já haviam criado pouco tempo antes — , aceita-se que o primeiro western do cinema seja O Grande Roubo do Trem, obra seminal de Edwin Porter em 1903. Mas o filme de Porter, importante no aspecto de evolução da linguagem, é rotulado também em outros gêneros e sub-gêneros.

O GRANDE ROUBO DO TREM ampliou conceitos inovadores de montagem trabalhados por Edwin Porter, no mesmo ano, em A VIDA DE UM BOMBEIRO AMERICANO, e é considerado por muitos historiadores como um dos primeiros, senão o primeiro, filme do gênero.

O fato é que, durante todo o período do cinema mudo, o western foi um dos gêneros mais explorados e de maior aceitação popular, junto com a comédia. A grande produção e a aceitação popular de histórias ainda frescas na cultura fizeram com que a produção em massa desses filmes de ação rápida e tramas banais, propício à diversão escapista, fosse considerado “menor”, ainda que propiciasse também o surgimento de astros precoces, como William Hart, o primeiro ator a se identificar e se notabilizar dentro do gênero, logo acompanhado por outros como Tom Mix e Bronco Billy.

Na década de 20, alguns filmes começaram a romper essa barreira que atrelava o western a produções de baixo custo, como é o caso de OS BANDEIRANTES (1923), de James Cruze, e CAVALO DE FERRO (1924), de John Ford, mas a grande parte das produções eram de baixo custo.

Ford, inclusive, aprendeu o seu ofício dirigindo dezenas dessas produções, que o prepararam para ditar os rumos do gênero na década seguinte. CIMARRON (1931), de Wesley Ruggles, e A LONGA JORNADA (1930), de Raoul Walsh, diretor prolífico e injustamente pouco lembrado até mesmo em outros gêneros, como o drama e o filme noir, ajudaram a solidificar a ideia de que o western era espaço propício para superproduções.

A LONGA JORNADA — à esquerda — e CAVALO DE FERRO — à direita. Raoul Walsh e John Ford trabalham, desde cedo, temas caros ao gênero: as caravanas e a chegada do trem.

Há quem defenda que o western é o único gênero com endereço fixo, já que se refere aos acontecimentos restritos a uma faixa de terra e a uma época específica. Por isso, ele é chamado de “gênero americano por excelência”, ainda que tenha tido diferentes variações e tenha produzido exemplares de destaque em outros países. É graças a essa definição, também, que surgiu o termo “plano americano”, para o enquadramento que corta o personagem na altura do joelho. Ele foi necessário dentro do gênero para as cenas dos icônicos duelos, já que era preciso mostrar o coldre e o revólver e o corte na cintura impediria isso.

O que fica dessas primeiras produções é a definição, desde cedo, dos principais temas que irão marcar o gênero, advindas, principalmente, das principais características históricas da Marcha para o oeste, que foi a incorporação de territórios interioranos pelos colonos pioneiros e desbravadores, que faziam a fronteira mover-se sempre um passo além.

Uma série de fatores motivaram e favoreceram esta expansão:

•A escassez de terras na faixa atlântica;
• A possibilidade de as famílias de colonos tornarem-se proprietárias, o que também atraiu imigrantes europeus;
• A necessidade do Norte, em fase de industrialização, de conseguir matérias-primas e alimentos;
• A corrida do ouro;
• A conquista de áreas de pastagens para os rebanhos;
• A construção de ferrovias, que permitia a aplicação lucrativa de capitais e integrava os mercados, assegurando o comércio para a produção agrícola.

Em torno desses fatores, surgem vários dos temas que definem o gênero. A busca por terras, a corrida do ouro, a consolidação das primeiras cidades, as grandes fazendas e a disputa pelos espaços e rebanhos, o advento do progresso e a chegada dos trilhos do trem, o confronto com os habitantes nativos e as tramas envolvendo as diferentes classes de habitantes desse cenário: os colonos, os comerciantes, os fazendeiros, os fora-da-lei, o exército e os agentes da lei. Os verdadeiros heróis dessa história não foram xerifes e caçadores de recompensa, mas os colonos e suas famílias.

APOGEU E QUEDA

Os filmes da década de 30 ainda bebiam muito da fonte de temas e do tratamento dado a eles, que foi deixado pelas produções mudas dos anos 20. Inevitavelmente, a grande maioria dos filmes ainda aplicava a dicotomia básica do bem contra o mal ao lado de outras, como a do progresso contra a selvageria, da civilização contra a barbárie.

Foi Ford que deu ao western seu atestado de maioridade em 1939, quando NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS não apenas demonstrou maturidade artística no uso da linguagem como provou que tramas simplistas podiam basear sub-tramas muito mais ricas e complexas. No caso, o verdadeiro microcosmo criado pelo diretor para discutir diferenças sociais dentro da minúscula diligências atacada pelos índios.

Foi o início da era de ouro do gênero, marcada por um crescimento gradual da compreensão de suas potencialidades para fugir da banalidade de temas triviais e de como ele poderia, em suas sub-tramas, ser enriquecido narrativamente.

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS. John Ford transforma o gênero trazendo uma maturidade técnica, formal e narrativa que ampliou as possibilidades e atraiu diretores consagrados a partir dos anos 40, popularizando e conferindo respeito ao gênero

A partir do final dos anos 40 e, principalmente, nos anos 50, o gênero muda e alcança seu apogeu em uma série de filmes que, nas mãos de diretores consagrados, discutiam dentro das matizes sépias temas muito mais complexos.

Filmes como ALMAS EM FÚRIA (1950), O MATADOR (1950), WINCHESTER 73 (1950), MATAR OU MORRER (1952), OS BRUTOS TAMBÉM AMAM (1952) e RASTROS DE ÓDIO (1956) são marcantes desse tempo, que já recebeu diferentes denominações por teóricos e pesquisadores, dos quais se destacam os termos superwestern e metawestern.

Esse tempo começou a ter fim junto com o próprio cinema clássico americano: o ano de 1969 é conhecido por ser o marco derradeiro da era de ouro do western, refletindo uma mudança de interesse do público que iria culminar, ao fim da era clássica do cinema americano, com a ascensão da Nova Hollywood.

Nos anos 70, o gênero resistiu graças ao esforço de diretores que impregnaram o western de um discurso fatalista e nostálgico, porém realista, e pela onda de westerns vindos de produções feitas na Itália e na Espanha. Era, porém, para o público, um gênero moribundo. Ele surgiu em momentos isolados nos anos 80 como diversão escapista, ainda que filmes como O CAVALEIRO SOLITÁRIO (1985), de Eastwood, mereçam uma revisão carinhosa em torno de sua importância dentro do gênero.

Embora tenha sido consagrado por OS IMPERDOÁVEIS, Clint Eastwood começou a homenagear e a rever os mitos do oeste seis anos antes, em O CAVALEIRO SOLITÁRIO. Mas o gênero voltaria a receber destaque só a partir do reconhecimento da indústria com os oscars concedidos a DANÇA COM LOBOS, de Costner.

Foi só no começo dos anos 1990 que o western recebeu nova aclamação por parte de público e crítica com o reconhecimento da indústria, nos Oscars de Melhor Filme dados a DANÇA COM LOBOS (1990) e OS IMPERDOÁVEIS(1992).

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Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS