O relicário Bergmaniano de “Morangos Silvestres”

A morte, o tempo, o amor e a redenção em uma obra-prima atemporal

Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena
9 min readOct 6, 2021

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Sobre “Morangos Silvestres” (1957) existe uma certa lenda sobre suas origens que defendiam que o filme havia sido pensado por Bergman como uma homenagem a Victor Sjostrom, um dos grandes nomes do cinema sueco e mundial, inspiração e influência de Bergman (notadamente “A Carruagem Fantasma” é um dos filmes que mais impressionou o jovem Bergman). Mas as raízes do filme são, felizmente, muito menos voltadas à uma pessoa em particular, e mais a uma ideia: a de abrir uma porta para o passado e buscar nele não apenas as explicações, mas as respostas para o presente.

Quando criança, Bergman passava muito tempo morando com sua avó numa pequena vila de Dalecarlie, província de tradições conservadoras. Porém no inverno, sua avó vivia em Upsala, num velho apartamento grande que trazia muitas recordações a Bergman. Como ele narra em uma série de entrevistas concedidas a Stig Björkman, Torsten Manns e Jonas Sima, por volta de 1955 ou 1956 (ele não lembrava exatamente), ele visitou o número 14 da rua Slottsgatan, onde ficava o velho apartamento, e ao pegar no puxador da porta de serviço subitamente imaginou como seria se, ao abrir a porta, um portal para o passado se abrisse e ele visse Lalla, a velha cozinheira com seu avental, preparando a sopa de aveia que fazia quando era pequeno. “De um golpe só, podia abrir a porta da minha infância.” lembra, acrescentando que a ideia do filme surgiu naturalmente e logo se tornaria um roteiro pronto. “Num estilo muito realista, abre-se subitamente uma porta, penetra-se na sua infância e depois abre-se uma outra porta, e é a realidade de novo, em seguida, pega-se a primeira rua à direita, e é uma nova fatia da sua vida”.

Bergman não tinha a idade que tem Isak Borg, personagem central de seu filme, mas para ele tal viagem à infância e às resoluções do passado deveria ser feita por um homem idoso, egocêntrico, cansado, afastado do mundo em que se encontrava. De forma reveladora, na entrevista, Bergman acrescenta, “como eu mesmo fiz.”

O Borg, que Victor Sjostrom, então com 78 anos aceitou relutantemente — ele próprio estava já cansado e indisposto na época — é um ex-professor e médico que aceita uma homenagem da universidade onde lecionou, e empreende uma viagem de carro pelo país, acompanhado de sua nora, Marianne (Bibbi Anderson), que está vivendo uma crise no casamento com Evald (Gunnar Björnstrand, talvez um dos maiores atores que o cinema já viu). Durante o percurso, Borg encontrará vivências físicas e espirituais que o farão rever suas escolhas e repensar sua vida, agora que encontra-se tão perto da morte.

Lançado no mesmo ano que “O Sétimo Selo”, “Morangos Silvestres” talvez seja a primeira grande obra-prima do diretor. Mais do que um olhar sobre o ato de envelhecer, Bergman entrega um olhar sobre o ato de aceitar se redimir. Um olhar superficial sobre essas duas obras já mostra uma similaridade temática que aponta uma das características mais marcantes do diretor: como poucos na história do cinema, Bergman é um diretor que se expõe em suas obras, ao longo da sua filmografia, e se permite ser radiografado a partir dos seus temas e da forma como os explora.

Temas como o casamento e o amor; o sofrimento cristão pelo “silêncio de Deus”, a relação entre arte e religião, o grande mistério que se apresenta pela morte, a sexualidade e seu papel nas relações humanas e a eterna busca por identidade surgem de forma claramente perceptível em seus filmes, e a intensidade com que eles são explorados permitem perceber os anseios e angústias do homem atrás das câmeras.

Igualmente, características narrativas e formais — a exploração do niilismo, a força feminina e a fraqueza masculina, o uso dos espelhos, o trauma da doença e o temor pela morte e o tempo fugidio — também se repetem, compondo um mosaico que constrói, na soma das partes, um grande quadro com seu rosto. Muitos dos temas e características acima se percebem em “Morangos Silvestres”, em seu auge ou de forma preliminar. Tendo começado nos anos 40, é notável como tanto se construiu em tão pouco tempo de carreira, falando apenas do cinema.

Bergman no set, com Sjostrom: relação de admiração devota que não foi abalada sequer pelo humor inconstante do lendário diretor sueco

Em seus primeiros filmes, no final dos anos 1940, Bergman era profundamente influenciado pelo neo-realismo italiano, as chagas do pós-guerra refletidas no ambiente e, sobretudo, na condição humana. Personagens desprezados pela sociedade, sobreviventes enfrentando o pior do homem e de sua classe. Seus filmes, até o ano de 1950, alternam esses temas ao mesmo tempo que alternava-se a recepção dos estúdios, público e crítica ao seu trabalho. É a partir de 1950 que inicia uma nova fase, deixando para trás o tom pessimista para investir nas relações humanas, principalmente a partir do seu olhar sobre os relacionamentos jovens nos chamados “filmes de verão”. Inevitavelmente, teremos personagens que olham para seus passados de forma nostálgica, e haverá o contraponto entre o campo, idílico e feliz, e a cidade, claustrofóbica e triste. Filmes como “Juventude” (1950) e “Mônica e o Desejo” (1953) fazem parte dessa fase.Junto com ela, Bergman vai desenvolver um olhar carinhoso à alma feminina. Como poucos, ele soube dar voz às aspirações, aos desejos reprimidos e aos segredos da alma feminina, através de personagens fortes manifestando-se em um tempo absurdamente masculino. “Quando as mulheres esperam” (1951) e “Sonhos de Mulheres” (1955) representam o início dessa característica tão marcante de Bergman, que seguirá presente em muitos de seus filmes nos 20 anos posteriores.

Além da juventude, dos relacionamentos amorosos e da alma feminina, outro tema caro ao diretor surge também com força nessas primeira década de carreira: a religião, e todas as contestações que podem surgir vindas de um homem educado a partir do olhar severo de um pai extremamente rígido, luterano fervoroso. Bergman exprime em sua carreira, normalmente, dualidades. A fé cega e a contestação, o paganismo e a religiosidade extrema, o amor e a punição, a devoção a Deus e a raiva a ele. Seus dramas medievais são os que com maior força trazem esses temas. “O Sétimo Selo”, um filme que é irônico, crítico e até cômico, é lembrado pela imagem icônica do cavaleiro que volta das cruzadas e joga xadrez com a morte. É uma ideia que resume a contestação sempre presente à Deus, ao sentido da vida e ao comportamento dos homens — essa contestação assume ares ligeiramente diferentes, mas igualmente críticos, em outra obra-prima, “A Fonte da Donzela”, de 1960, em um tempo em que se percebem influências de Kurosawa, um cineasta cuja obra ele conheceu nos anos 50. É o filme que marca o fim de uma nova etapa da carreira do diretor — antes, uma de suas obras-primas, “Morangos Silvestres” já reservava um olhar maravilhoso em sua forma e conteúdo ao ato de envelhecer e entender a construção do seu próprio “eu” — sem esquecer de dialogar com outras obras, um traço marcante do verdadeiros artistas, esse hábito de, consciente ou inconscientemente, legar a suas criações um diálogo direto entre elas.

É interessante, no caso, como “Morangos Silvestres” guarda similaridades com “O Sétimo Selo”, como aponta Jesse Kalin, professor emérito de filosofia e cinema em Cambridge, autor de mais de uma obra dedicada a olhar a carreira e a produção de Bergman. Kalin observa que os dois filmes, rodados um após o outro, essencialmente acompanham um longo dia de protagonistas que viajam para longe, em seus devaneios, para finalmente retornarem aos seus locais de peregrinação no que é, ao fim, uma jornada “final” para ambos os personagens.

Bergman apresenta a necessidade de retornar ao passado para compreender o que da vida se perdeu e como (ou se) isso pode ser recuperado. Se Antonius Block, em “O Sétimo Selo” imagina que seu elo perdido no passado seria recuperar seu casamento — para o qual falta-lhe tempo, restando-lhe aguardar com a esposa pelo fim inevitável, mesmo que no processo ele possa salvar outras pessoas (outro casal) — no caso do velho professor Borg, a impossibilidade vem da morte da esposa, uma impossibilidade substituída pela oportunidade de rever seus erros e tornar-se um pai novamente para filhos e netos. Restaurar sua posição de patriarca, não apenas por posição, mas de vocação, para sentir-se vivo e novo, pelo curto período de vida que lhe resta. De substituir a mágoa com a rejeição de um antigo amor pela tranquilidade de aceitar o que a vida lhe deu em troca.

Evald, o filho, em flashback conflituoso com Marianne, expondo que certas heranças progridem e certos erros se perpetuam de pai para filho

A “pele”, digamos assim, que compõe Morangos Silvestres é uma jornada que expõe oportunidades físicas de olhar para si mesmo — os estranhos a quem dá carona e sua nora — com os devaneios de sonhos e visões que lhe permitem reviver as dores do espírito, e seus maiores temores. Assim, o filme estrutura essa “porta para a infância” visionada por Bergman em 1956, em Upsala, nas interações com Marianne e as pessoas que cruzam seu caminho, e no plano espiritual pelos seus sonhos (ou pesadelos).

Fisicamente, temos nos diálogos no carro a exposição de uma relação conflituosa com a nora . A parceria com Oscar Rosander rende uma montagem fluida, com momentos inspirados, como na lembrança do diálogo entre nora e filho no carro, quando, no campo e contracampo, Isak troca de lugar com Evald de forma alegórica, sem nenhum tipo de aviso prévio, uma amostra de que certas heranças progridem e certos erros se perpetuam. Isso é antecipado pela própria relação de Marianne com Borg, onde o que vemos são distanciamentos expostos pelos campos e contracampos, exposições visuais de diálogos de um homem egoísta e amargurado (a primeira coisa que diz a Marianne é “Não fume”, personificação de um homem mais preocupado em expor suas visões do que perceber os outros). O filme, aliás, já abre expondo um homem amargurado, quando diz que “”Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las”

Há, nesse plano físico, rupturas, distanciamentos e por fim, no decorrer da viagem, aproximações, que culminarão, lá na frente, no último contato humano real e caloroso de Isak, o beijo de boa-noite de Marianne em seu leito.

Aqui, diferente de outras obras, os fades rimam com o próprio processo de olhar para sua vida no caminho de viver o que resta. E é talvez o melhor trabalho do diretor de fotografia Gunnar Fischer, com uma luz de preenchimento dura e contrastante e que ajuda a criar alguns dos mais bonitos enquadramentos da carreira do diretor, a presença constante da luz e da sombra em meio às lembranças do velho protagonista.

A relação com Marianne no “road movie” existencial em que rupturas, distanciamentos e aproximações são expostos pela câmera de Bergman, um trajeto físico necessário para a evolução espiritual do velho professor

No campo espiritual, a cena do pesadelo na rua é um dos grandes momentos da filmografia de Bergman, onírica e ao mesmo tempo assustadora, com o melhor conjunto de metáforas sobre a velhice que já vi no cinema: do relógio sem os ponteiros à roda da carruagem (uma alusão à Carruagem Fantasma, do próprio Sjostrom) que, presa, teima em seguir em frente até quebrar e deixar cair o caixão que transportava com o próprio Isak.

Se há, então, os pesadelos que lembram a proximidade da morte — ou uma segunda chance — também há os sonhos nostálgicos que o levam até seus amores da juventude, e as mágoas represadas com a rejeição do seu grande amor em prol do seu irmão. Aqui, os morangos silvestres são associados à promessa de vida, algo presente no início da vida do personagem como médico no interior. Em “O Sétimo Selo”, são esses morangos silvestres que são compartilhados por Jof e Mia com Block e os outros em uma refeição de paz e contentamento. Em “Morangos Silvestres” essa cena se repete na pousada à beira do lago, enquanto Isak e Marianne almoçam com seus jovens companheiros de carona — Sara, Anders e Viktor — simplesmente desfrutando da companhia um do outro (também é uma versão do sacramento da comunhão ).

A cena celebra esses momentos e, dessa forma, é uma visão do que há de melhor na vida, algo que o velho professor parece começar a recuperar ao ser confrontado com a brevidade do tempo que resta e as opções de como fazer as pazes e se redimir com seu passado. Aí, recorro novamente a Kalin, quando diz que o último sorriso de Isak ao dormir talvez seja uma consciência disso, um sorriso de afirmação e esperança. Talvez, simplesmente o conforto de um retorno imaginário à sua infância, onde seus pais o chamam e acenam e ele pode se retirar do mundo das necessidades e cuidados reais antes de morrer.

É interessante como Bergman, autor do roteiro repleto de algumas das melhores frases de sua carreira não se preocupa com verossimilhança, e torna o próprio ato da lembrança uma metáfora, já que Isak também relembra e vê momentos do seu passado que ele não presenciou. É um lembrar carregado de autocrítica e nostalgia, às vezes assustador, às vezes terno, como são, de forma contrastante, a morte e o amor, parceiros e opostos de um dos mais lindos e transformadores filmes da história do cinema.

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Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS