Trágica Obsessão (1976)

A reverência, a imagem, a citação e a cópia

Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena
6 min readOct 6, 2021

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Em determinado momento de Trágica Obsessão (Obsession, 1976) o milionário Michael Courtland (Cliff Robertson) conversa, pela primeira vez, com a jovem — exata personificação de sua falecida esposa — que ele encontra em Roma trabalhando na restauração de um afresco na mesma igreja em que conheceu sua esposa, duas décadas atrás.

Ela comenta com ele que há algum tempo a umidade começou a descascar a pintura do altar revelando uma pintura mais antiga por baixo, deixando os especialistas com uma terrível dúvida: remover e destruir a pintura original, um afresco famoso, para desvendar o antigo rascunho que serviu de orientação à pintura ou permanecer com a pintura original, que estava por cima?

A mesma composição separada por 20 anos, ou o tempo que pára: Court e Sandra visitam o túmulo da falecida. DePalma parece ter feito questão de gravar a cena no mesmo dia com a câmera na mesma posição — observe os detalhes da árvore — para enfatizar a passagem da obsessão de um personagem para outro

O diálogo é a base sobre a qual Brian De Palma e o roteirista Paul Schrader — que se desentenderam quanto aos rumos da narrativa — orquestram essa pouca lembrada incursão do cineasta em torno de uma de suas próprias obsessões, a obra de Alfred Hitchcock.

Porém, se por um lado De Palma é continuamente tachado por muita gente como um mero imitador do mestre inglês, filmes como Trágica Obsessão, que pode informalmente marcar o início de uma “era de ouro” do diretor, até a metade dos anos 80, também são a prova de como seu fascínio pelo mestre pode até amealhar certos temas e, com certeza, intervir em seu fazer técnico, mas também é o estopim para uma reconstrução que procura, em certo momento, encontrar seu próprio caminho.

Se é perceptível a presença de ecos de filmes como Rebecca (1940)e Um Corpo que Cai (1958), principalmente, De Palma de maneira sábia se apropria da lembrança emocional que o espectador pode ter por esses filmes para usá-la a seu favor e deturpar a expectativa que a trama parece encaminhar. E isso é um sinal de autoralidade que foge, e muito, ao mero “copycat” que ele no qual ele poderia se transformar. Assim, em uma virada repentina, o diretor subverte as expectativas não apenas uma, mas duas vezes.

Nos passos do mestre: alguns recursos de Hitchcock são ensaiados por DePalma, em uma fase em que o diretor visivelmente desenvolve suas qualidades técnicas, mas vai além da mera imitação. Acima, o movimento de grua de “Notorious”, que sai do plano aberto para encerrar em um plano detalhe de um elemento importante na trama. Abaixo, cena de “Trágica Obsessão” em que saímos do plano aberto para nos aproximarmos da foto da esposa falecida.

A primeira subversão à obra que referencia é quanto à obsessão do personagem principal com o passado: se em Um Corpo que Cai é James Stewart que se mostra obcecado por transformar Kim Novak em uma nova versão de seu antigo amor, no filme de De Palma, Courtland (Robertson) abdica dessa busca insana e aceita a mulher que encontra em Roma próximo ao final do filme. Mas, na cena imediatamente anterior, é Sandra quem parece estar obcecada em se tornar a antiga esposa ao visitar o túmulo que Courtland mantém intocado.

A rima visual que De Palma contrói entre esta cena e outra semelhante no início do filme dá a entender que ela compartilha das mesmas obsessões que seu marido — sua própria incursão à casa da falecida demonstra um ritual de aceitação de duas vias: dela e da própria ambientação, demonstrada pela forma como o diretor insere fotos das paredes de casa dividindo o quadro à medida em que Sandra avança pelo local, na direção do quarto que Courtland mantinha fechado.

Em dois momentos posteriores, De Palma usará a óbvia porém sempre simbólica composição de espelhos para mostrar a fragmentação da personagem em diferentes personalidades (ou, pelo menos, essa é sua intenção).

Processo de imersão: à medida que se aprofunda na mansão em direção ao quarto proibido, outros olhares parecem observar a busca de Sandra.
Frente a frente com a pintura “original”, De Palma enfatiza o efeito comparativo. O que está à nossa frente? A pintura definitiva ou seu rascunho? Com qual delas você optaria por permanecer?

Porém, na segunda subversão, o próprio desenrolar da trama demonstra que De Palma usa as nossas expectativas em prol de sua narrativa.

No momento em que estabelece uma similaridade temática, o diretor sabe que é esperado que o público, pelo paralelismo estabelecido com o filme de 1958, desenvolva certas expectativas. E é em cima dessas expectativas que De Palma nos surpreende e nos conduz por outro caminho.

É bem verdade que essas reviravoltas não alcançam a riqueza psicológica de Um Corpo que Cai — e surgem, na verdade, em um ritmo bem mais acelerado, inclusive em sua cena final — mas ajudam a distanciar a obra do diretor e a conduzi-la em seu próprio caminho.

Dupla personalidade surge aos poucos exposta em reflexos. A estratégia é batida, mas seu uso demonstra apuro visual em um projeto de início de carreira.

A influência da técnica surge, aqui e acolá, em diferentes momentos, mostrando que a influência de Hitchcock desde o início acompanha a carreira de De Palma.

Da encenação para a câmera, que permite ao público perceber um detalhe ínfimo, só seu, lhe oferecendo a cumplicidade e alertando-o para o desenrolar dos fatos (logo no início, em que em vez de a câmera buscar a arma na cintura de um garçom, é o garçom que vira-se e permite que a câmera perceba o detalhe) até o movimento de câmera que sai de um plano mais amplo para o detalhe — como em Interlúdio (Notorious, 1946) e tantos outros filmes de Hitchcock, que entre suas maiores lições estava, também, o da importância do plano detalhe como forma de atrair o público continuamente para participar do desenrolar de suas tramas, fazendo dele um cúmplice dos atos, mais do que um mero observador.

O peso da direção de arte: as lembranças do rosto do passado cercam Courtland em sua vida. O poder da imagem é um dos mais poderosos temas da obra de DePalma e aparece com força aqui, até de forma opressora.

Mas mais do que as heranças de Hitch, De Palma já mostra os recursos que marcarão sua carreira nas décadas seguintes: a panorâmica de 360 graus, desvendando o cenário e fazendo mover também a ação, transformando o movimento da câmera em torno do eixo em um movimento narrativo — e subvertendo a teoria, que costuma dar à panorâmica e ao tilt uma função descritiva.

Já o split screen é emulado aqui através do uso do cenário, em que uma parede divide a tela e nos permite prestar atenção em dois pontos/dois personagens no mesmo quadro.

O “falso split screen” dividindo a tela em duas ações simultâneas e complementares. DePalma encena de forma maravilhosa diferentes elementos em cena, apesar de ensaiar o recurso apenas em um momento. Seu filme seguinte iria adotar o split screen como ferramenta narrativa poderosa.

E o split focus, com o uso de lentes de foco duplo — um recurso a que David Bordwell se refere, em “Sobre a História do Estilo Cinematográfico”, como “dioptro de campo cindido” — colocam seguidamente dois personagens dividindo o quadro com um efeito que desfoca parte do ambiente, mas mantém os rostos próximos em escala horizontal e distantes na profundidade — uma forma de trabalhar as similaridades de intenções ou importância dos personagens, ou simplesmente de permitir ao público perceber suas expressões simultaneamente.

Foco duplo compartilha atenção em personagens intimamente ligados na trama: as razões do uso desse recurso são expostos na narrativa à medida que a trama se desenrola.

Ao expor a história do afresco com duas pinturas, e da dúvida dos estudiosos quanto ao que fazer na restauração da parede, Sandra (Geneviève Bujold), sua nova paixão, pergunta a Courtland o que ele faria naquele caso.

Sem piscar e embasbacado pela visão de uma quase reencarnação de sua esposa, ele responde que ficaria com a pintura original. “A beleza deve ser preservada”.

Ao optar pelo externo e pela aparência, o personagem abre mão de tentar compreender a essência, o rascunho que deu origem à imagem e, por conseguinte, às suas imperfeições. O que não nos leva longe de colocar, lado a lado à escolha do personagem, as próprias interpretações (ou dificuldades delas) para compreender as escolhas de De Palma entre reverência, homenagem, citação e cópia. É como se, com De Palma, fosse possível vislumbrar a base e, em frente à pintura que a cobre, descobrir novas camadas e novas escolhas, filme a pós filme.

Trágica Obsessão (Obsession, 1976)
Dir. de Brian DePalma. Com Cliff Robertson, Geneviève Bujold, John Lithgow Sylvia Kuumba Williams, Wanda Blackman, J. Patrick McNamara, Stanley J. Reyes

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Fábio Luis Rockenbach
Cena a Cena

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS