Não vá pela marquise

João Miller
Cena Seguinte
Published in
2 min readJan 10, 2017
"Não confie na proteção das marquises. Cedo ou tarde elas vão ruir. Ou lotar."

S e estiver caindo uma tempestade ou mesmo uma chuva de meteoros anunciando um iminente apocalipse, não ouça a voz da consciência: não vá pela marquise. Maldita sobra de concreto que foi feita para nos fazer estar ali sempre, secos e parados, esperando a hora que não existe. Os prédios deveriam terminar no próprio limite das janelas, de modo que do topo ao chão desse pra traçar uma linha reta e opressora cortando toda proeminência que aparecesse. Assim seríamos melhores.

Por debaixo das marquises habitam seres infelizes que não sabem que são infelizes. Vagam à esmo no espaço fino de pedras portuguesas e cimento, com o olhar pressionando o horizonte como se fossem capazes de interferir no mau tempo. E esperam, crentes de que estão se protegendo quando na verdade não estão. Nem mesmo as marquises estão a salvo de rajadas de vento carregadas de gotas grossas ou feixes de sol cortantes que teimam em aparecer. Não confie na proteção das marquises. Cedo ou tarde elas vão ruir. Ou lotar.

Do lado de fora, os bem aventurados. Alguns frustrados, outros contentes. Mas todos ensopados e correndo da morosidade sem perceber. O tênis molhado, o guarda chuva que não abre, a pele que arrepia. Sinal de que estão todos vivos. Esses existem, mesmo durante a aquaplanagem dos carros e o banho inesperado. Mesmo depois do primeiro espirro e do cigarro encharcado. Na lama, na tempestade ou no sol a pino, esses passam a existir. A única maneira de parar o tempo ou mesmo dobrá-lo por alguns instantes é se esquivar quando o corpo pedir o que já conhece. O raio desenha em milhares de riscos, as nuvens pesam negras e densas, mas a grande tormenta não vem pelos céus. Assim disseram os que não existiram.

Em dois mil e dezessete, mesmo que o céu se descole do teto, não vá pela marquise.

Originally published at www.cenaseguinte.com.br on January 10, 2017.

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