"Mas o que ninguém sabe é que eu vi, não diria que só com meus próprios olhos, mas eu vi ele voltando. Enviesado, de ladinho, entrando na cordilheira."

Saturno enviesado

João Miller
Cena Seguinte
Published in
3 min readJul 1, 2019

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O céu se esmaecia em breu naquela noite. O deserto do Atacama é assustadoramente lindo, mesmo no escuro total. Eu estava ali, diante de um mar de estrelas semi leitoso, como se a anos-luz de nós elas todas estivessem se nutrindo em suas estrelas mães e esparramando tudo pelo universo. O objetivo daquele passeio era ver Saturno. Era preciso correr, ou assim o planeta sairia da vista terrestre e continuaria sua órbita longa. Após uma lenta introdução feita pelos condutores do evento, os mesmos que disseram que era preciso correr, vieram também as inúmeras perguntas estapafúrdias de outros turistas. Eu, impaciente, já começava a procurar o planeta a olho nu. Não conseguia imaginar quando eu teria Saturno assim ao meu alcance de novo, diferente de todas as sortes de eclipses lunares, solares, totais, que temos todos os anos. Foi então que finalmente alguma outra alma aflita resolveu levantar e começar a organizar os telescópios de uma vez. Eram dois desses tubos arrojados enormes, posicionados no ângulo certo para um grupo de quase 30. Na sua maioria casais, todos eles na minha frente, na certa dispostos a levar por volta de 10 minutos vendo e revendo Saturno. E assim foi:

1) A moça teve dificuldade de enxergar
2) O rapaz garantiu que era muito fácil
3) Fácil nada
4) Faz assim, olha praquela constelação e desce um pouquinho mais o olho
5) Ah to vendo mas não to vendo o anel.

Repita tudo com mais dois casais e lá se vai a minha sorte. Na certa Saturno já tinha passado e eu perdi seus anéis no infinito pra sempre. Mas minutos-luz depois, é chegado o momento do último casal deixar a cena depois de uma tentativa fracassada de colocar o celular no visor pra tirar foto. Assim que chegou a minha vez o cara falou, aperta um pouco a vista, ele tá bem ali no horizonte, enviesado. No comecinho eu já estava tão imerso naquelas estrelas de um céu 4K que esqueci que Saturno tava apenas a alguns quilômetros-luz da gente. O cara que me lembrou. E aí conseguiu? Tá enviesado, não tá? Eu logo percorri o infinito um pouquinho pra baixo e vi. Era um borrão que foi ganhando nitidez, mas dessa vez uma resolução mais tv de tubo. Bem vi Saturno ali, como se o Cid Moreira tivesse acabado de colocar um VT da NASA no Jornal Nacional daquele abril de 1986. Era preciso um pouco de imaginação, eu tava querendo muito acreditar no que vi e acabei vendo mesmo. Saturno, lindo, os anéis já oxidados, mas lindo e brilhante. E sem dúvida, enviesado, diferente do que os livros escolares nos mostram. Eu me despedi, e Saturno já ia adentrando a cordilheira, de ladinho assim como quem sai à francesa. Bastou uma última piscada e ele sumiu.

Pisquei de novo e me vi numa mesa de bar, alguns meses depois. Não lembro quem exatamente, mas em alguma parte quente da discussão pra explicar o que ninguém tava conseguindo entender, o planeta voltou. Foi a primeira vez que ouvi aquilo, que Saturno exerce muita influência sobre a gente, porque sua massa é enorme e também porque sua órbita é tão longa que ele está no mesmo lugar no mapa astral de todo mundo. E ele pode andar pra trás, e cobrar muito de você e zicar a porra toda. Mas o que ninguém sabe é que eu vi, não diria que só com meus próprios olhos, mas eu vi ele voltando. Enviesado, de ladinho, entrando na cordilheira. Os astrólogos não viram o que eu vi. Imagina que só eu e aquele grupo de trinta seriamos capazes de trazer esse novo dado pro rumo do planeta Terra, e ele pode significar muito mais do que atraso, mas a distopia total e catastrófica.

Pisquei de novo, lá se foram alguns anos e vi gente fazendo o seu futuro com as próprias mãos, e o céu ali, igualzinho. É certo que a Lua faz mexer as ondas e interfere no ciclo menstrual. Mas se Saturno sair da nossa vista, de ladinho, enviesado, eu acho até que vai ser melhor. Vão-se os anéis, ficam-se os dedos — murmurou minha avó de um plano bem mais importante.

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