Um banheiro em 2018

Marcela Capobianco
Cena Seguinte
Published in
2 min readMay 8, 2018
As pequenas opressões estão tão dissolvidas no cotidiano que nem nos damos conta

Duas mulheres de cerca de 30 anos conversam enquanto eu ouço tudo escondida na cabine. “Ih, colocou aparelho! É móvel?” “É, menina… Ainda tô me acostumando. Mas quando eu durmo na casa do meu namorado eu tiro esse treco antes de deitar. Ele não gosta”. Eu, em silêncio, aposto minhas fichas na interlocutora, que me decepciona. “Hehe te entendo… Eu, antes de dormir, passo um creme meio melecado no rosto. Meu marido não gosta. Aí eu deito, dou o beijo de boa noite, e só depois passo o creme. Fico minutos sem me mexer para não sujar o travesseiro”. As duas riem. Eu quase choro.

Dou descarga e abro a porta a tempo de vê-las saindo do banheiro. Vou lavar as mãos consciente de que o destino não quer que eu arranje confusão com mulheres que não conheço no banheiro de um ambiente corporativo. Eu só queria ter feito uma pergunta para elas. A pergunta que ficou martelando várias vezes na minha cabeça, até eu parar para escrever esse texto.

“O que o seu homem faz, esteticamente, para te agradar ou para não te desagradar?”. Ou então poderia ter só plantado uma sementinha: “Você sabe que, se você não dormir de aparelho, o seu tratamento dentário vai levar o dobro do tempo?”.

O destino também não deixou que eu colocasse em prática a minha sororidade. Eu poderia ter dito para ela que, se qualquer outra pessoa tiver que definir o que faremos como nossos próprios corpos, vamos continuar bem longe da liberdade.

Para a amiga que vai dormir com o rosto melecado, eu simplesmente diria “Às vezes, tudo que um cônjuge merece ouvir é um belo de um ‘foda-se’. Experimente e venha conhecer a leveza da vida. E cuidado para não ficar com torcicolo”.

As pequenas opressões estão tão dissolvidas no cotidiano que muitas vezes nem percebemos. Temos que fazer um exercício diário para identificá-las e, se possível, eliminá-las. Da próxima vez, eu vou sair da cabine do banheiro um pouco antes e vou me meter na conversa, sim. Acho que devemos isso umas às outras.

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