CT&I: Desinvestimento é a direção errada

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Em meio à emergência de saúde pública internacional em virtude do surto do novo coronavírus (nomeado 2019-nCoV) que se iniciou na China, pesquisadores brasileiros têm feito contribuições significativas ao conjunto de ferramentas disponíveis para combater a doença.

Cientistas da Universidade Federal da Bahia desenvolveram técnica capaz de identificar a presença do vírus em até 3 horas, reduzindo significativamente o prazo anterior de 48 horas para diagnóstico da nova doença. Paralelamente, a Fiocruz e o Ministério da Saúde do Brasil, em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), proveram treinamento em diagnóstico laboratorial do novo coronavírus a especialistas da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai.

Olhando para trás, encontramos mais alguns exemplos do protagonismo da ciência brasileira. Não é preciso ir longe: o vírus da Zika foi identificado pela primeira vez pelo mesmo grupo de pesquisa da Universidade Federal da Bahia. Mais recentemente, pesquisadores da Fiocruz no Pernambuco desenvolveram técnica diagnóstica que reduz de R$ 40,00 para R$ 1,00 o custo de diagnóstico do Zika — e em apenas 20 minutos.

Não é uma novidade que o Brasil se envolva substancialmente e até lidere respostas a desafios nacionais, regionais e globais de saúde. Também não é surpresa que tenhamos capacidade de lidar com essas emergências na área da saúde com agilidade, inclusive desenvolvendo inovações de diagnóstico e tratamento em curto espaço de tempo. O renome da ciência brasileira na área biomédica a precede, e não é descabido. O cenário nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) na área de saúde é reconhecidamente um caso de sucesso [1] entre muitos exemplos de políticas fracassadas [2].

O exemplo do que conquistamos na área da pesquisa em saúde deveria inspirar as políticas de inovação e de ciência e tecnologia nacionais em geral. Isto sem falar nas políticas implícitas relacionadas à CT&I — aquelas que não tratam ostensivamente de inovação, mas que a impactam profundamente: política industrial, propriedade industrial e fatores macroeconômicos. No entanto, o que vimos observando há alguns anos é uma inexplicável guinada na direção contrária.

A Proposta de Emenda à Constituição n˚ 187/2019 é apenas a mais recente manifestação dessa tendência, e foi severamente criticada (dentre os críticos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, e a Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras, ANPEI) por aventar a possibilidade de extinção do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), gerido pela FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos). O fundo já sofre historicamente com o contingenciamento de recursos, mas mesmo assim representa um pilar fundamental no financiamento à inovação no país, como destacado pelo presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, em audiência pública no Senado Federal para discutir a PEC:

“A construção dos 24 parques tecnológicos brasileiros e o surgimento de muitas startups dependeram fundamentalmente de recursos do FNDCT, assim como o apoio a milhares de iniciativas de inovação em pequenas e médias empresas, via subvenção econômica. Uma descontinuidade absoluta neste processo, que já está acontecendo em escala significativa pelo enorme contingenciamento atual nos recursos do FNDCT, seria catastrófica para a área de ciência, tecnologia e inovação”.

O êxito que alcançamos em CT&I no setor de saúde depende de uma conjunção de elementos essenciais. Um deles é a compreensão de que os gastos públicos na área são, na realidade, investimentos no futuro do país. Seja na ciência básica ou aplicada, na formação de professores ou profissionais de áreas técnicas, no custeio da infraestrutura de pesquisa, na facilitação de parcerias entre entidades públicas e privadas, no uso do poder de compra do Estado para guiar os caminhos tecnológicos atinentes às necessidades mais prementes da população, entre outros, o papel do Estado como propulsor da CT&I é fundamental para a soberania e desenvolvimento do país.

A justificativa da PEC fala em “prioridade [sic] definidas num passado remoto, que podem não mais representar a necessidade e as prioridades da sociedade brasileira atual”. O desinvestimento em CT&I representa, definitivamente, um movimento diametralmente oposto à necessidade e prioridades da sociedade brasileira, atualmente e desde sempre.

Ainda que a Proposta deixe espaço para a ratificação de fundos, o que significa que, em tese, o FNDCT poderia ser mantido mediante lei complementar editada em até dois anos após a promulgação da PEC, a mera possibilidade de sua extinção já seria temerária. Especialmente após ataques sucessivos à estrutura nacional de CT&I, incluindo reduções reiteradas do orçamento do MCTI no passado e ameaças de cortes de bolsas de pesquisa, a direção para a qual deveríamos encaminhar nossos esforços é a contrária.

Em 2016, Mariana Mazzucato e Caetano Penna, em análise do sistema brasileiro de inovação (p. 6), escreviam sobre uma política de inovação mirando o futuro:

“Também significa desafiar políticas econômicas de austeridade, de modo que restrições fiscais não prejudiquem o crescimento em longo prazo. Investimentos públicos em P&D e inovação são aprimoradores de produtividade, criam empregos bem pagos e têm mais efeitos multiplicadores do que outros gastos governamentais. Estes investimentos podem, portanto, reequilibrar o orçamento público no longo prazo ao incrementar rendas futuras. Esses efeitos dinâmicos são frequentemente negligenciados em programas de ajuste fiscal” [3].

É hora de reconhecer o papel da ciência e da inovação como promotores do desenvolvimento econômico, não de discutir mecanismos que ponham em risco o sistema que, a duras penas, construímos.

[1] Penna, C.; Mazzucato, M. The Brazilian innovation system: A mission-oriented policy proposal. Brasília: CGEE, 2016.

[2] Cassiolato J.; Szapiro M.; Lastres H. Dilemas e perspectivas da política de inovação. In: Barbosa, N.; Marconi, N.; Pinheiro, M.; e Carvalho, L. Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil. Rio de Janeiro: GEN Atlas, 2015.

[3] No original: “[I]t also means challenging austere economic policies so that fiscal restraints do not damage long-run growth. Public investments in R&D and innovation are productivity-enhancing, creating well-paid jobs and with higher multiplier effects than other governmental expenditures. Such investments can therefore help rebalance the public budget in the longer term by increasing future revenues. Such dynamic effects are often neglected in fiscal adjustment program”.

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