Ecologia Profunda: quando o todo não corresponde à soma das partes
Uma ciência? Um movimento social? Uma forma de militância? Sabemos que a ecologia é, nos dias de hoje, um conjunto de saberes de alta complexidade. O que muitos desconsideram, porém, é que a ecologia também pode ser abordada a partir de uma dimensão filosófica que envolve, ao mesmo tempo, questões biológicas, éticas, psicológicas e mesmo espirituais. Foi pensando nisso que, na década de 1970, o filósofo e ecologista norueguês Arne Næss (1912–2009) cunhou o termo Dypøkologi — que se traduz como Deep Ecology no inglês ou como Ecologia Profunda no português.
Essa vertente do pensamento ecológico é, de certa maneira, um rompimento com as leituras antropocêntricas da natureza. Para esse modelo de pensamento, cada ser e cada bioma é um sistema vivo dotado do que chamaríamos de direito intrínseco à existência. E tal direito independe, totalmente, do valor utilitarista que nós, humanos, costumamos atribuir ao mundo natural e a seus elementos. A Ecologia Profunda, portanto, sugere um novo referencial: ela preconiza uma transição de valores que pode resultar em um novo paradigma epistemológico.
Aliás, do ponto de vista científico, a Ecologia Profunda mantém um rico diálogo com a chamada teoria geral dos sistemas (TGS), desenvolvida na década de 1940 pelo biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy (1901–1972). Tal teoria é, na verdade, uma tentativa de resgatar o caráter universalista dos saberes científicos. Em outras palavras: é um anseio por reconectar a visão fragmentada que dominou o pensamento ocidental ao longo dos últimos séculos, desde a filosofia de René Descartes (1596–1650). Para a Ecologia Profunda, e também para a teoria geral dos sistemas, o todo é muito mais do que meramente a soma de suas partes.
Apesar de parecer abstrata, a Ecologia Profunda pode ter consequências bastante concretas na esfera da política ambiental. Um exemplo é o debate acerca dos chamados Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) — estratégia segundo a qual pessoas ou instituições passam a ser financeiramente beneficiadas caso promovam iniciativas que visem, por exemplo, conservação de mata nativa, preservação de recursos hídricos, redução de emissões de poluentes atmosféricos… Em uma perspectiva meramente econômica, a ideia pode fazer sentido. Porém, segundo os preceitos da Ecologia Profunda, tal proposta expressa uma visão antropocêntrica e utilitarista: ela incorpora os valores referentes à preservação do equilíbrio ecossistêmico dentro de uma lógica puramente econômica. A ecologia é, assim, cooptada pelos processos de financeirização da natureza. Ou, de uma maneira mais pragmática, o pensamento ecológico torna-se uma mera disciplina da esfera econômica.
Para os adeptos da Ecologia Profunda, por outro lado, a formulação de políticas ambientais deve ser pautada não por dinâmicas financeiras — mas sim por uma ética planetária subjacente ao pensamento ecológico. Isso significa que conservar ecossistemas, proteger a biodiversidade e prezar por nossos recursos hídricos são ações legítimas por sua própria natureza ética: na condição de espécie, nós, humanos, temos o dever de respeitar a integridade dos sistemas naturais e, mais que isso, compreender que somos, parafraseando o físico austríaco Fritjof Capra, apenas mais um fio na complexidade da teia da vida.
Assim pensam os ideólogos da Ecologia Profunda. Para eles, portanto, respeitar a vida em todas as suas formas deve ser uma atitude inerente à ontologia de nossa espécie. É valorizar o direito de existir apenas por existir, e valorizar o direito de ser simplesmente por ser.
Henrique Kugler