Cervejas Trapistas: a verdadeira história

Guilherme Mattoso
Cervejeiros Confessos
5 min readJan 6, 2016
Cervejas representantes das 11 abadias certificadas pela Trappist International Association

“A cerveja fabricada com conhecimento é bebida com sabedoria”

Assim são definidas as cervejas Trapistas, produzidas pela Ordem Cisterciense da Estrita Observância (OCSO), que inclui nos dias de hoje 18 mosteiros. Destes, apenas 11 produzem cervejas. Na verdade, são os únicos em todo o mundo que produzem cerveja Trapista, atendendo a critérios estritos e específicos de produção. Dada a intenção de vários fabricantes que tentam se aproveitar do nome “Trapista”, além de buscar uma maneira de diferenciá-las das demais cervejas de Abadia, a OCSO teve que projetar um selo exclusivo para os seus produtos.

Cervejas Trapistas: únicas e exclusivas
Para ser considerada uma cerveja Trapista, a abadia onde ela é feita deve cumprir um conjunto de regras muito específicas. Essas regras, de acordo com o website da Ordem, são as seguintes:

  • A cerveja deve ser fabricada dentro dos muros de um mosteiro Trapista, pelos próprios monges ou sob sua supervisão;
  • A cervejaria tem de ser de importância secundária dentro do mosteiro e deve seguir práticas de negócios adequadas ao modo de vida monástico;
  • A cervejaria não se destina a ser um empreendimento lucrativo. A renda deve cobrir o custo de vida dos monges e a manutenção dos edifícios e terrenos do mosteiro. O que quer que sobre deve ser doado para instituições de caridade, trabalho social e auxílio de pessoas necessitadas.

As 11 abadias que produzem cerveja Trapista:
Hoje, apenas 11 cervejarias em todo o mundo recebem o selo de autenticidade da Associação Internacional Trapista (ATP), instituição que reúne os 18 mosteiros da OCSO. A mais conhecida é provavelmente aChimay, mas são também autenticadas a Achel, La Trappe, Orval, Rochefort, Westvleteren, Westmalle, Engelszell, Zundertm, Spencer e Tre Fontane. A maioria delas está localizada na Bélgica e Holanda, exceto a Spencer, que fica nos Estados Unidos; a Engelszell, na Áustria; e a Tre Fontane, na Itália.

Abadia de Westvleteren, Bélgica (GNU Free Documentation License)

La Trappe, Chimay e Westmalle detém as maiores produções: são mais de 100 mil hectolitros de cerveja por ano, exportadas para todo o mundo. Estas são as que mais contribuem com serviços sociais através do lucro das vendas. As abadias menores, como a Westvleteren, produzem apenas para a sustentabilidade dos monges e do próprio mosteiro. Curiosamente, as cervejas Westvleteren só podem ser compradas na própria abadia, com reserva feita por telefone.

A maioria das cervejarias Trapistas conta, hoje, com um monge que supervisiona os trabalhadores, em sua maioria leigos, não necessariamente monges. Além das cervejas fabricadas para comercialização, os mosteiros também produzem uma variedade chamada de Enkel ou Blonde, de baixa graduação alcoólica, para consumo próprio.

Cerveja Trapista vs. Cerveja de Abadia
As cervejas Trapistas são inigualáveis. O nome não se refere a um estilo particular, mas ao fato de que são fabricadas dentro de um mosteiro cisterciense. Embora as mais conhecidas sejam a Dubbel, Tripel e a Quadruppel, os monges poderiam muito bem produzir qualquer estilo de cerveja que, ainda assim, teria o selo de denominação de origem e continuaria sendo uma autêntica Trapista.

Orval, uma das cervejas Trapistas

Assim, outras cervejarias que não estão incluídas nesta seleta lista não podem produzir cervejas denominadas Trapistas. É comum, no entanto, que alguns fabricantes tentem imitar as fórmulas associadas aos cistercienses. Nesse caso, as cervejas são chamadas de “Abadia”.

Mito ou realidade: a origem das cervejas Trapistas
Acredita-se que as receitas Trapistas sejam milenares. Sem dúvida, a verdadeira história é que não há uma “verdadeira história”. Somente suposições.

Para começar, das abadias atuais, Rochefort é a única que surgiu antes de 1836. Além disso, as receitas Trapistas que chegaram até nós são do século passado. A Dubbel, por exemplo, foi criada na abadia de Westmalle devido a uma mudança em sua receita, em 1926. O nome “Brown Ale Tripel”, entretanto, surgiu em 1956, quando esta mesma abadia realizou algumas mudanças na formulação da sua Strong Golden Ale.

De qualquer forma, os monges Trapistas provêm dos cistercienses e, anteriormente, da ordem monástica beneditina, de grande tradição histórica. A Igreja Católica detinha o monopólio da ciência e do conhecimento, por isso, ao longo desse tempo, pode ser verdade que algumas receitas sejam realmente antigas. A Ordem Beneditina e, portanto, também a Trapista, segue a regra de São Bento (480–547 AD), na qual “devemos viver pela obra das nossas mãos”. Sua filosofia é baseada no trabalho manual para se aproximar de Deus.

A origem da fabricação de cerveja nos monastérios beneditinos pode ter vindo de Monte Cassino, no sul da Itália, onde São Bento fundou seu primeiro monastério. Neste período, apenas o vinho era consumido nas dependências da abadia, mas como a ordem foi se expandindo para o norte da Europa, com o tempo, os monges passaram a produzir também cerveja. Na verdade, no século VII, São Columbano, da Irlanda, escreveu que no mosteiro de St. Galo (perto de Zurique) foram produzidos três tipos de cerveja: uma para os monges, outra para outros hóspedes e uma terceira para os peregrinos. Talvez, aqui se revele a razão pela qual as abadias atuais produzem a Enkel (ou Blonde) para consumo doméstico.

Cervejas La Trappe

A Ordem Cisterciense nasceu no início do século passado. A motivação para sua criação surgiu da inquietação sentida por alguns beneditinos ao perceber que muitos monastérios já não seguiam as regras de São Bento. O nome adotado se deve à cidade onde se localiza a sua sede, Cister (França), bem como a abadia de seu fundador (Roberto de Molesme): Abadia Cister.

Mais tarde, no século XVII, o abade Rancé, que na época estava no comando da La Trappe, na França, implementou uma reforma bastante severa. Outros mosteiros continuaram a sua reforma, agrupadas em uma terceira ordem monástica, a Trapista. A origem da irmandade surgiu na França, mas com a Revolução Francesa e o anticlericalismo que veio com ele, os monges se viram obrigados a migrar para outros países, resultando no surgimento dos mosteiros Trapistas belgas e holandeses no século XVIII e XIX.

Como vimos, então, a Ordem Trapista tem apenas quatro séculos, mas a mais antiga cervejaria Trapista surgiu bem mais recentemente. No entanto, é provável que as receitas tenham sido passadas de geração em geração de monges, e também tenham sido transferidas de um monastério para o outro. Todavia, isso é apenas um palpite, de modo que a verdadeira história das antigas cervejas Trapistas ainda permanece um mistério.

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