Photo by Toa Heftiba on Unsplash

Diário como ferramenta de pesquisa em tempos de isolamento

Willian Grillo
CESAR Update
Published in
5 min readMay 20, 2020

--

Hoje pela manhã escutei um podcast sobre a reabertura da sociedade na Europa após a passagem pelo pico da pandemia de coronavírus. Me chamou a atenção o assunto, pois provavelmente passaremos por isso no futuro, e inicialmente ouvi como a possibilidade de estar assistindo a uma “janela no futuro” como os próprios apresentadores descreveram.

Mas, após entender o formato da narrativa no programa, relatos do dia-a-dia em áudio das próprias pessoas que vivem em cidades europeias com diferentes realidades mas que iniciaram a abertura juntas, fiz a relação com as dificuldades que estamos vivendo para fazer pesquisas em design, especialmente as imersões em profundidade. Passei a prestar mais atenção no processo e formato para poder extrair alguns aprendizados para utilizarmos nessa situação de isolamento.

Voltando ao podcast, ouve ele! É bem interessante, seja pela camada de informação, ou pelo formato e processo, que vou discutir um pouco nesse post. Espero vocês no próximo parágrafo!

O diário na pesquisa com usuários

Colocar o usuário no centro do processo de design é um dos maiores desafios na prática de pesquisa, seja em tempos “normais” ou de isolamento social. Muitas vezes não temos acesso ao contexto, ambiente em que o usuário vive, ou exerce as atividades que temos interesse. Tem casos em que gostaríamos de ter um relato mais limpo de sua experiência, sob o ponto de vista do usuário sem as interferências que uma entrevista ou observação, mesmo bem conduzidas, podem acarretar.

Dentro disso, a técnica do diário, diário de uso continuado, sonda cultural ou qualquer método onde você pede para o usuário coletar os dados sem a participação direta do pesquisador, se torna uma excelente opção, potencializada de maneira exponencial em épocas de pandemia, onde não temos acesso a nenhum contexto de pesquisa que envolva visitas a campo (pelo menos não físicas).

Um diário é um registro de atividades (leia-se: comportamentos) que você solicita que um usuário mantenha por um determinado período de tempo.

A ideia aqui não é um treinamento sobre o uso da técnica, mas usar o caso do podcast para ilustrarmos e discutirmos a aplicação, para vermos que facilmente podemos fazer uso dela.

Para quem quer mais informação sobre diário de uso continuado e sonda cultural, no fim do post tem uma série de materiais.

E onde entra o podcast da reabertura?

Pois bem, acho que ele dá suporte a algumas reflexões que podemos fazer sobre essa técnica, e principalmente, ver que podemos combinar com outras técnicas que já conhecemos para poder “perder o medo” de se aventurar nesse campo e começar imediatamente a colocar isso em prática em nossas pesquisas e projetos. Dividi em quatro camadas de reflexões: a Preparação, a Coleta, a Edição e os Resultados, e abaixo ilustro com inferências que podemos fazer a partir da escuta do podcast, tentando com isso analisar esse modelo utilizado pelo jornalismo e nos ajudar a fazer conexões com nossas práticas como designers e pesquisadores.

Preparação do diário

Façam um exercício de imaginação e pensem: “como tudo começou na montagem desse podcast?”

Ouvindo o material, notamos algumas evidências:

  • Foram escolhidas pessoas para relatar a experiência em países específicos.
  • Foi criado um roteiro básico, mas com pouca estrutura. Em alguns momentos ouvimos os narradores falando para o jornalista, mas a maioria das falas é aberta.
  • O período escolhido era bem específico, por um acontecimento que fugia ao controle dos jornalistas. Logo, o trabalho de recrutamento e preparação dos narradores dos diários não podia atrasar, sob pena de perder uma grande oportunidade de contexto.

Coleta de Dados

O resultado ouvido no podcast mostra apenas um recorte da coleta, que aconteceu durante 7 dias consecutivos e cada narrador contando apenas a sua história, sem contato com os demais “pontos de vista”.

Foi escolhida a coleta em áudio, obviamente pelo fato de ser para um podcast, mas também podemos ver que esse meio nos proporciona coletar mais traços emotivos do relato do que o texto.

Edição

Aqui a gente tem alguns pontos importantes que os jornalistas utilizaram para contar a história, mas que também podem ser utilizados por designers para compilar e sintetizar os dados coletados:

  • Os relatos foram apresentados seguindo a cronologia temporal, 1 dia de cada vez, passando por todos os narradores. Isso mostra que o jornalista escolheu constrastar os dados entre os diferentes países, e não a evolução da experiência individual de cada narrador.
  • O jornalista emitiu poucas notas de resumo ou opinião ao longo das narrativas. Os primeiros dias foram bem livres, e somente na última sequência ele interfere, chamando atenção para alguns pontos específicos.
  • Os jornalistas não emitiram opinião geral ao final do episódio, deixando o entendimento por conta do ouvinte.

Importante salientar que o podcast assumiu um tom neutro na narrativa, mas se formos editar esses mesmos dados como uma síntese de análise de pesquisa, como pesquisadores e designers precisaremos emitir nossa interpretação e opinião sobre o impacto para o desafio que estamos inseridos. Sempre deixando bem claro o que é observado e o que é interpretado.

Resultados

É legal agora exercitarmos o que a escuta do podcast nos fez tirar da situação narrada. Mesmo de maneira rápida, podemos tirar algumas interpretações do material e até levantar outras perguntas que podem ser feitas para o material bruto, ou futuras oportunidades de coleta:

  • Os países tomaram medidas parecidas, mas com diferenças nas regras. Por exemplo, enquanto a Espanha permitiu 30% de ocupação nos estabelecimentos, Portugal permitiu 50%. Quais os fatores que levam a essas diferenças?
  • Podemos captar algumas diferenças de comportamento entre os diferentes países, demonstrado pela descrição dos fatos e até pela emoção dos narradores. Enquanto Portugal parece ter um comportamento de maior serenidade, na Itália temos um forte receio à abertura, enquanto na Espanha temos comportamentos que beiram a irresponsabilidade.
  • A narradora da Espanha fala muito sobre o calor infernal. Será que é um fator que influiu decisivamente para esse comportamento menos cauteloso do povo em relação aos outros?

Esses são alguns insight retirados da escuta, e que poderiam ser úteis em um eventual projeto que envolvesse esse mesmo contexto de pesquisa.

E o que fica disso tudo?

Apesar de ter feito uma reflexão sobre uma técnica, acredito que o fundamental sempre será mantermos o foco nos dados que esperamos obter em um processo de pesquisa. Nenhuma estratégia começa pela ferramenta, mas precisamos estar muito atentos a técnicas que podemos utilizar para contornar problemas que aparecem ao longo do caminho.

As vezes essa técnica está em uma área diferente do design, como jornalismo, medicina, psicologia, etc…As vezes ela é compartilhada, como no caso do diário, mas o método de aplicação muda um pouquinho dependendo dos objetivos. O que precisamos é estarmos abertos a essa negociação metodológica e escolher o que podemos aproveitar, adaptar, melhorar, ou até descartar.

Espero que o artigo ajude quem esteja trafegando por dilemas parecidos! E fiquem à vontade para compartilhar outras experiências e reflexões sobre a coleta de dados nesse momento de isolamento!

--

--

Willian Grillo
CESAR Update

UX Designer/Researcher @inovacao_cesar | Service Design | Coffee | Beer | Wine Entusiast