Precisamos falar sobre acessibilidade nos eventos
Gosto muito participar de palestras e workshops, mas tem um probleminha que quase sempre enfrento: nem sempre são acessíveis, especificamente para mim, em Libras. Tenho deficiência auditiva e, nos eventos, dependo da Língua Brasileira de Sinais — Libras (é língua e não linguagem, tá bom?). E sim, nós temos uma segunda língua oficial no Brasil e é Libras. Ela só foi reconhecida em 2002 pela lei federal 10.436/02 (e regulamentada pelo Decreto Federal 5.626/05):
Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais — Libras e outros recursos de expressão a ela associados.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais — Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Mesmo com a língua oficializada, ela não é muito reconhecida. Nem a acessibilidade para pessoas surdas. Só para deixar claro: acessibilidade não é caridade, é um direito de todos.
Afinal, quem precisa/utiliza Libras?
Antes de ir para alguns eventos de grande porte, eu sempre mando aquele e-mail solicitando intérprete de Libras para evitar essa dor de cabeça que é pagar caro para ver palestras e não ter um retorno porque não era acessível. Imaginem acompanhar todo o evento naquela língua que não tem fluência? Não deveria ter a necessidade de mandar esse email. É muito cansativo e frustrante.
A solicitação de intérprete por e-mail não deveria ser um ato necessário para participar. Talvez as organizações pudessem tomar iniciativa e dizer: Ei, esse evento é acessível em Libras. Vemtibora! Avisem-nos que vamos abalar para você! Ver um texto desses seria um ✨ brilho nos olhos ✨.
Os eventos mais conscientes em inclusão sempre deixam uma pergunta no formulário de inscrição. Perguntam se você tem deficiência e perguntam qual delas, embora muitas vezes façam a pergunta de maneira incorreta. É portador de alguma deficiência ou tem mobilidade reduzida? Não utilizamos o termo portador, não mais. Até porque a deficiência não se porta, ela não é um objeto, faz parte da pessoa. A pergunta mais natural possível seria:
É pessoa com deficiência ou tem mobilidade reduzida? ✔️
Esse ano eu vi uma palestra sobre interfaces invisíveis e caiu a ficha que minha deficiência auditiva é invisível. Ainda mais invisível porque sou oralizada. Quando falo, acham que sou estrangeira. Muita gente não sabe exatamente o que significa esse termo oralizada. Existem vários tipos de pessoas surdas: deficiente auditiva, oralizada, sinalizada e bilíngue. Deixo aqui um vídeo que Gabriel Isaac explica muito bem o que é oralizar.
Oralizada é aquela pessoa com deficiência auditiva que fez fonoterapia, fez esforço para falar com voz. E sinalizada, apenas se comunica com as mãos, logo Libras é uma língua gestual-visual.
Tem intérpretes de Libras?
Todo mundo dizia que os eventos de Design são muito incríveis, que você entra e sai com “alma renovada”, com a cabeça pipocando de ideias para projetos futuros. Eu queria isso e também fazer uma coisa bem diferente que me tirasse na zona de conforto. Resultado: participei da UXConfBR — Conferência de UX em Porto Alegre (estou com saudades, Pedro Belleza, Thiago Esser, Rafael Helm ) e um workshop de acessibilidade (Projetando interfaces com acessibilidade em mente, com Marcelo Sales).
Confesso o que pesou na minha decisão foi a presença pesada dos meus coworkers Tamires A Agripino Serra, Haidée Lima, Giselle Rossi Araujo, Erika Campos, Renata Souza e Rodrigo L. Carneiro nas palestras e workshops no UXConfBR. E claro, em especial, minha coworker/aluna de Libras Cora Lima Sales que foi participar dessa aventura designer comigo. Sem ela, a experiência não seria tão divertida e prazerosa como foi.
Tem workshop de acessibilidade acessível?
Antes de tudo, comecei o processo cansativo de “vai ter intérpretes de Libras?”, também perguntei ao Marcelo sobre a necessidade do uso de fones de ouvido para uma dinâmica, o que seria impossível para mim. Essa pergunta pegou ele de surpresa, — acho que nunca pensou que teria uma aluna surda num workshop de acessibilidade — mas isso não o impediu de procurar alternativas para que eu não ficasse de fora nessa prática, enfim, ele achou uma. Sei que o impacto desse exercício não seria a mesma coisa para mim, mas deu a entender o que ele queria passar para os alunos. E sim, é possível analisar a acessibilidade dos produtos usando o leitor digital. Pelo menos no macbook tem a função de mostrar legendas junto com o leitor digital.
Eu sabia que teria intérpretes de Libras na conferência, só que recebi um e-mail inesperado dizendo que o workshop também teria. 💙 Que surpresa linda. 💙 Vou explicar como é o trabalho de intérprete de Libras, inclusive tem leis (LEI Nº 12.319 DE 01.09.2010) que regulamentam a profissão de Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais:
É o profissional que domina a Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa e que é qualificado para desempenhar a função. Ele deve possuir formação específica na área de sua atuação (por exemplo, a área da direito). Sua função é interpretar de uma dada língua de sinais para outro idioma, ou deste outro idioma para uma determinada língua de sinais.
Libras é uma língua como qualquer outra
Como qualquer língua, cada estado tem seu “sotaque” e regionalismo, tive dificuldade de compreender alguns sinais porque eram diferentes dos sinais utilizados na minha cidade. Então perguntava qual era a palavra daquele sinal e rapidamente peguei o jeito. Senti algumas dificuldades com as intérpretes de Libras que não tinham experiência na área de design, tinha que mostrar como era o sinal para aquele termo que ficavam soletrando, também não entendiam muito bem a língua americana, já que usamos muitos termos em inglês para a área de user experience design. Tentavam explicar um contexto, não conseguiam e perdiam o conteúdo. Foi meio complicado.
Saibam que Libras é uma língua que só foi reconhecida em 2002, é tudo muito novo e não há sinais para todas as palavras da língua portuguesa. Tem eventos que não dão assistência na pesquisa dos intérpretes, eles precisam estudar os temas e os conteúdos. Eles vão precisar tirar dúvidas com os consultores ou pessoas surdas que têm o conhecimento na área para estarem preparados. É extremamente importante ter acesso prévio para que o público surdo receba o conteúdo de maneira mais fiel.
Sempre tem dois intérpretes nesses eventos, eles se revezam em vinte minutos ou meia hora. Nunca parei para pensar se era o suficiente, até que perguntei a uma intérprete. Ela respondeu que o ideal era ter três a quatro intérpretes, dependendo da duração do evento, mas nunca acontece dessa forma porque a verba é insuficiente. É um trabalho que exige bastante disposição, você tem que ficar em pé, está sempre mexendo os braços, ouvindo o que a pessoa está falando e traduzindo em Libras. Às vezes tem uma iluminação forte sobre a pessoa. Não é um trabalho fácil.
Os intérpretes de Libras normalmente ficam no lugar marcado no palco e tem uma iluminação já calibrada pra ficar em cima deles. Então, as poltronas também são reservadas para o público surdo para visualizar melhor. Mas tem um probleminha: fotógrafos e videomakers não param de passear no palco e sempre passam “sem querer” na frente dos intérpretes. O ideal seria mandar um manual do que pode ou não pode fazer durante o evento.
Seja um palestrante acessível ️️❤
Como pessoa com deficiência auditiva, deixo aqui algumas dicas para tornar sua palestra mais acessível:
- Tem vídeos? Coloque legendas
- Áudios? Transcreva
- Não deixe o microfone em frente da boca
- Fique de frente para o público
- Fale pausadamente
- Pratique empatia
Isso não é só sobre os eventos, também é sobre os palestrantes. Quando eu vejo os vídeos sem legendas é de doer o coração, independentemente da língua. 💔 Estando em português, os intérpretes podem traduzir, eu gostaria de ver o que está passando no vídeo, mas muitas vezes a distância entre o intérprete e o telão é imensa. Se estivesse em inglês, eles não saberiam traduzir, porque não eram fluentes.
Pessoas que organizam eventos: se puderem, escrevam um textinho mostrando o quão é importante que os vídeos estejam legendados para seus palestrantes.
Só pra ressaltar: seja um palestrante acessível ❤️
São tantas pessoas que me perguntam como foi a minha experiência nesses eventos, como era a interpretação, se estava agradável… Percebi que a minha realidade é tão distante delas. Talvez as minhas experiências gerem empatia. Se vocês têm alguma dúvida ou quiserem aprimorar algo nos eventos ou palestras, é só falar com as pessoas com deficiência e comigo também.
Você, que tem alguma deficiência, não tenha medo de fazer algo que acha vai te limitar. Aceite sua deficiência como sua parte, porque é ela que vai te fazer mais forte. Tem essa frase que eu vi por aí e achei muito incrível:
— Somos todos pessoas. A deficiência é apenas outra maneira de apimentar as coisas.
Acessibilidade sempre! 💙