Precisamos falar sobre acessibilidade nos eventos

Ana Cuentro
CESAR Update
Published in
7 min readSep 25, 2018

Gosto muito participar de palestras e workshops, mas tem um probleminha que quase sempre enfrento: nem sempre são acessíveis, especificamente para mim, em Libras. Tenho deficiência auditiva e, nos eventos, dependo da Língua Brasileira de Sinais — Libras (é língua e não linguagem, tá bom?). E sim, nós temos uma segunda língua oficial no Brasil e é Libras. Ela só foi reconhecida em 2002 pela lei federal 10.436/02 (e regulamentada pelo Decreto Federal 5.626/05):

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de SinaisLibras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais — Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Mesmo com a língua oficializada, ela não é muito reconhecida. Nem a acessibilidade para pessoas surdas. Só para deixar claro: acessibilidade não é caridade, é um direito de todos.

Afinal, quem precisa/utiliza Libras?

Antes de ir para alguns eventos de grande porte, eu sempre mando aquele e-mail solicitando intérprete de Libras para evitar essa dor de cabeça que é pagar caro para ver palestras e não ter um retorno porque não era acessível. Imaginem acompanhar todo o evento naquela língua que não tem fluência? Não deveria ter a necessidade de mandar esse email. É muito cansativo e frustrante.

A solicitação de intérprete por e-mail não deveria ser um ato necessário para participar. Talvez as organizações pudessem tomar iniciativa e dizer: Ei, esse evento é acessível em Libras. Vemtibora! Avisem-nos que vamos abalar para você! Ver um texto desses seria um ✨ brilho nos olhos ✨.

Os eventos mais conscientes em inclusão sempre deixam uma pergunta no formulário de inscrição. Perguntam se você tem deficiência e perguntam qual delas, embora muitas vezes façam a pergunta de maneira incorreta. É portador de alguma deficiência ou tem mobilidade reduzida? Não utilizamos o termo portador, não mais. Até porque a deficiência não se porta, ela não é um objeto, faz parte da pessoa. A pergunta mais natural possível seria:

É pessoa com deficiência ou tem mobilidade reduzida? ✔️

Esse ano eu vi uma palestra sobre interfaces invisíveis e caiu a ficha que minha deficiência auditiva é invisível. Ainda mais invisível porque sou oralizada. Quando falo, acham que sou estrangeira. Muita gente não sabe exatamente o que significa esse termo oralizada. Existem vários tipos de pessoas surdas: deficiente auditiva, oralizada, sinalizada e bilíngue. Deixo aqui um vídeo que Gabriel Isaac explica muito bem o que é oralizar.

Oralizada é aquela pessoa com deficiência auditiva que fez fonoterapia, fez esforço para falar com voz. E sinalizada, apenas se comunica com as mãos, logo Libras é uma língua gestual-visual.

Tem intérpretes de Libras?

Todo mundo dizia que os eventos de Design são muito incríveis, que você entra e sai com “alma renovada”, com a cabeça pipocando de ideias para projetos futuros. Eu queria isso e também fazer uma coisa bem diferente que me tirasse na zona de conforto. Resultado: participei da UXConfBR — Conferência de UX em Porto Alegre (estou com saudades, Pedro Belleza, Thiago Esser, Rafael Helm ) e um workshop de acessibilidade (Projetando interfaces com acessibilidade em mente, com Marcelo Sales).

#PraCegoVer É uma foto com quatro pessoas, da esquerda para direita estão Ana (eu), Gabi, Tamires e Cora. Todas estão agasalhadas segurando uma placa azul com o nome do evento UXConfBR.

Confesso o que pesou na minha decisão foi a presença pesada dos meus coworkers Tamires A Agripino Serra, Haidée Lima, Giselle Rossi Araujo, Erika Campos, Renata Souza e Rodrigo L. Carneiro nas palestras e workshops no UXConfBR. E claro, em especial, minha coworker/aluna de Libras Cora Lima Sales que foi participar dessa aventura designer comigo. Sem ela, a experiência não seria tão divertida e prazerosa como foi.

Tem workshop de acessibilidade acessível?

Antes de tudo, comecei o processo cansativo de “vai ter intérpretes de Libras?”, também perguntei ao Marcelo sobre a necessidade do uso de fones de ouvido para uma dinâmica, o que seria impossível para mim. Essa pergunta pegou ele de surpresa, — acho que nunca pensou que teria uma aluna surda num workshop de acessibilidade — mas isso não o impediu de procurar alternativas para que eu não ficasse de fora nessa prática, enfim, ele achou uma. Sei que o impacto desse exercício não seria a mesma coisa para mim, mas deu a entender o que ele queria passar para os alunos. E sim, é possível analisar a acessibilidade dos produtos usando o leitor digital. Pelo menos no macbook tem a função de mostrar legendas junto com o leitor digital.

#PraCegoVer Montagem de duas fotos. A foto do lado esquerdo, no canto esquerto está Marcelo Sales com a mão no rosto, no quadro branco está projetado um slide todo azul com o título “Chega de bla bla bla” e a frase embaixo “Vamos ao que interessa). No canto direito, tem uma intérprete de Libras sorrindo perto da mesa em que eu estava. A foto do lado direito, eu estou no meio das duas intérpretes de Libras abraçando e todas estão agasalhadas com echarpe.

Eu sabia que teria intérpretes de Libras na conferência, só que recebi um e-mail inesperado dizendo que o workshop também teria. 💙 Que surpresa linda. 💙 Vou explicar como é o trabalho de intérprete de Libras, inclusive tem leis (LEI Nº 12.319 DE 01.09.2010) que regulamentam a profissão de Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais:

É o profissional que domina a Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa e que é qualificado para desempenhar a função. Ele deve possuir formação específica na área de sua atuação (por exemplo, a área da direito). Sua função é interpretar de uma dada língua de sinais para outro idioma, ou deste outro idioma para uma determinada língua de sinais.

Libras é uma língua como qualquer outra

Como qualquer língua, cada estado tem seu “sotaque” e regionalismo, tive dificuldade de compreender alguns sinais porque eram diferentes dos sinais utilizados na minha cidade. Então perguntava qual era a palavra daquele sinal e rapidamente peguei o jeito. Senti algumas dificuldades com as intérpretes de Libras que não tinham experiência na área de design, tinha que mostrar como era o sinal para aquele termo que ficavam soletrando, também não entendiam muito bem a língua americana, já que usamos muitos termos em inglês para a área de user experience design. Tentavam explicar um contexto, não conseguiam e perdiam o conteúdo. Foi meio complicado.

#PraCegoVer Atrás da intérprete de Libras, está uma placa de mdf com o nome do evento UXConfBR. A intérprete está sinalizando “encontrar”.

Saibam que Libras é uma língua que só foi reconhecida em 2002, é tudo muito novo e não há sinais para todas as palavras da língua portuguesa. Tem eventos que não dão assistência na pesquisa dos intérpretes, eles precisam estudar os temas e os conteúdos. Eles vão precisar tirar dúvidas com os consultores ou pessoas surdas que têm o conhecimento na área para estarem preparados. É extremamente importante ter acesso prévio para que o público surdo receba o conteúdo de maneira mais fiel.

Sempre tem dois intérpretes nesses eventos, eles se revezam em vinte minutos ou meia hora. Nunca parei para pensar se era o suficiente, até que perguntei a uma intérprete. Ela respondeu que o ideal era ter três a quatro intérpretes, dependendo da duração do evento, mas nunca acontece dessa forma porque a verba é insuficiente. É um trabalho que exige bastante disposição, você tem que ficar em pé, está sempre mexendo os braços, ouvindo o que a pessoa está falando e traduzindo em Libras. Às vezes tem uma iluminação forte sobre a pessoa. Não é um trabalho fácil.

#PraCegoVer Um vídeo com alguns momentos gravados no UXConfBR. Uma mulher está palestrando e a intérprete está traduzindo para Libras simultaneamente. (Vídeo por Juliana Finkler)

Os intérpretes de Libras normalmente ficam no lugar marcado no palco e tem uma iluminação já calibrada pra ficar em cima deles. Então, as poltronas também são reservadas para o público surdo para visualizar melhor. Mas tem um probleminha: fotógrafos e videomakers não param de passear no palco e sempre passam “sem querer” na frente dos intérpretes. O ideal seria mandar um manual do que pode ou não pode fazer durante o evento.

Seja um palestrante acessível ️️❤

Como pessoa com deficiência auditiva, deixo aqui algumas dicas para tornar sua palestra mais acessível:

  • Tem vídeos? Coloque legendas
  • Áudios? Transcreva
  • Não deixe o microfone em frente da boca
  • Fique de frente para o público
  • Fale pausadamente
  • Pratique empatia

Isso não é só sobre os eventos, também é sobre os palestrantes. Quando eu vejo os vídeos sem legendas é de doer o coração, independentemente da língua. 💔 Estando em português, os intérpretes podem traduzir, eu gostaria de ver o que está passando no vídeo, mas muitas vezes a distância entre o intérprete e o telão é imensa. Se estivesse em inglês, eles não saberiam traduzir, porque não eram fluentes.

Pessoas que organizam eventos: se puderem, escrevam um textinho mostrando o quão é importante que os vídeos estejam legendados para seus palestrantes.

Só pra ressaltar: seja um palestrante acessível ❤️

#PraCegoVer É uma ilustração de Haideé Lima. No canto superior esquerdo tem um título “Caro Palestrante” e embaixo uma frase “As pessoas são diferentes entre si e não percebem o mundo da mesma maneira. Por isso…” A palavra “diferentes” está destacada. No meio da ilustração, são formas abstratas de várias cores que lembram as partes de dois rostos humanos. No canto inferior direito, tem outro título “Acessibilize sua fala!” e embaixo tem uma lista: Utilize legenda para os vídeos; Faça transcrição dos áudios; Não deixe o microfone em frente da boca; Fique de frente para seu público; Fale pausadamente.

São tantas pessoas que me perguntam como foi a minha experiência nesses eventos, como era a interpretação, se estava agradável… Percebi que a minha realidade é tão distante delas. Talvez as minhas experiências gerem empatia. Se vocês têm alguma dúvida ou quiserem aprimorar algo nos eventos ou palestras, é só falar com as pessoas com deficiência e comigo também.

Você, que tem alguma deficiência, não tenha medo de fazer algo que acha vai te limitar. Aceite sua deficiência como sua parte, porque é ela que vai te fazer mais forte. Tem essa frase que eu vi por aí e achei muito incrível:

— Somos todos pessoas. A deficiência é apenas outra maneira de apimentar as coisas.

Acessibilidade sempre! 💙

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Ana Cuentro
CESAR Update

Accessibility Product Designer. Aqui escrevo sobre Acessibilidade e crônicas. https://anacuentro.com.br/