(2020) Opinião | Bugsnax: a tecnologia não esqueceu o que é ser criança

Visual exibido, rapidez insuperável e… jogos fofinhos

Gustavo Maganha Andria
Chá de entretenimento
5 min readDec 8, 2020

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Reprodução: Young Horses

Um processador customizado de 8 núcleos da AMD, 10.3 teraflops de potência base e um utópico SSD que é capaz de transmitir 5.5 GB de dados não comprimidos por segundo. Essas são apenas algumas características do PlayStation 5, console de nova geração e aposta da Sony para reacender experiências em uma indústria recheada de jogos de aventura em terceira pessoa e shooters anuais. O controle foi totalmente modificado para trazer o sentimento de algo completamente inédito aos jogadores, abusando de sensores de movimento, vibração e gatilhos adaptáveis. Diferente da Microsoft, que procura conectar toda a família Xbox por meio de seus serviços pouco lucrativos e altamente atrativos, a Sony investe em tornar o PlayStation uma plataforma mais cara, com um aspecto premium que por vezes é até mal visto na indústria de games.

Em meio ao hardware potente, jogos mais caros e serviços como retrocompatibilidade e Plus Collection sendo forçados pela competência da concorrente, é impensável que a tecnologia nova do PlayStation entregue títulos que não representem o poder máximo de sua inédita (e chamativa) arquitetura. Contudo, desde o momento do anúncio de Astro’s Playroom, jogo que vem pré-instalado em todos os PlayStation 5, até o lançamento recente de Bugsnax, não há dúvida de que a tecnologia ainda tem de se adaptar as várias fases do desenvolvimento lúdico do ser humano.

Nós somos o que comemos…

Desenvolvido pelo estúdio Young Horses, criadores do divertido e estranho “Octodad”, Bugsnax é um jogo de aventura em primeira pessoa, com elementos de puzzle e investigação. Quem joga assume o papel de um(a) jornalista, que viaja até Snaktooth a pedido da estudiosa Lizbert Megafig para documentar a vida de criaturas que são “meio comida” e “meio inseto”. Porém, ao chegar no local o jogador descobre que Lizbert está desaparecida e junta-se ao restante da população de “Grumpuses”, a raça do jogo, para procurá-la.

Com um enredo aparentemente simples, Bugsnax direciona suas cores centrais às criaturas que dão nome ao jogo. Comidas ou insetos, a construção de cada um dos bichinhos é uma das mais criativas da indústria de games recentemente. São mais de 100 espécies, que vão desde azeitonas voadoras até costeletas de porco em formado de lagarta. O objetivo é extrair ao máximo da criatividade de quem joga, oferecendo a possibilidade de capturar cada tipo de Bugsnax de uma forma diferente, entregá-los à população local e assim encontrar Lizbert. Ao consumir um Bugsnax, cada personagem sofre uma modificação em uma parte do corpo, simbolizando singelamente as consequências das escolhas que nos moldam no cotidiano.

Lizbert e um Razzby | Reprodução: Young Horses

Ainda que o desenvolvimento de personagens pudesse ter sido deixado de lado para favorecer a criatividade proposta no gameplay, Bugsnax alimenta o jogador com uma lista de personalidades conhecidas na dublagem de jogos mundial, como Max Mittelman e Robbie Daymond. O investimento dado ao elenco garante uma atmosfera única para cada um dos habitantes de SnaxBurg, principal cidade da ilha. O cuidado com os detalhes do enredo e com o andamento das entrevistas, parte essencial da jogabilidade sua como jornalista, dão a Bugsnax uma aparência muito mais robusta do que sua proposta inicial pode demonstrar. Por trás de um jogo simples e construído com uma linguagem infantil, há uma profundidade por vezes deixada de lado por muitas produções multimilionárias da indústria.

Por que todo mundo deveria falar sobre Bugsnax?

O refrão “Everybody’s talkin’ about Bugsnax” é o motivo do subtítulo. A vida é um easter egg, né?

Quando foi anunciado, Bugsnax recebeu um dos maiores pontos de interrogação já vistos na história dos videogames. Diferente de obras como Death Stranding, onde o “não entender” é sinônimo de mistério e suspense narrativo, Bugsnax sofreu com o clássico pré-julgamento de um público que está acostumado com super produções voltadas às expectativas de um ambiente multimilionário, dominado pelos “triple A”. Frases como “Odiei isso”, “Que jogo feio” ou “O que fumaram pra fazer esse jogo” podem ser encontradas em quase qualquer vídeo de “reaction” internet afora.

O game da Young Horses, propositalmente anunciado em uma conferência voltada aos jogos de PS5, foi uma tentativa da Sony de mostrar que os espaços para criações mais infantilizadas devem ser respeitados em todos os ambientes da tecnologia. Bugsnax é diferente de um game indie com visual mais cativante, como o delicado Kena: Bridge of Spirits. Causa estranheza, dúvidas e repulsas ao apresentar insetos em formatos de comida, engolidos por habitantes igualmente bizarros. É, portanto, uma viagem ao imaginário guardado no interior de cada jogador, em que é preciso deixar de lado as altas performances e os gráficos polidos com ray-tracing. Bugsnax mostra que não é apenas o público infantil que precisa de atenção ao resgatar, no início da geração de consoles mais poderosa da história, a necessidade de repensar o que realmente importa no mundo dos videogames.

A adição obrigatória de Astro’s Playroom aos consoles da Sony, mesmo que seja feito para providenciar as nuances do novo controle, junta-se à ideia de que uma produção bem feita não necessariamente envolve sangue ou capturas faciais avançadas. Ao comer centopeias de hambúrguer e falar com habitantes que tiveram seus braços esquerdos substituídos por batatas fritas, Bugsnax não deve utilizar 30% da capacidade total de processamento do PlayStation 5. Ainda assim, prova que a tecnologia não esqueceu de mostrar ao adultos como é bom desligar os filtros e voltar a ser criança.

Astro’s e Kena: duas criações com propostas diferentes, que cativam o lúdico de forma menos intensa, mas ainda significativa.

O que Bugsnax me ensinou?

Bugsnax me ensinou que a primeira reação natural ao ver algo completamente fora do padrão é negativa, conflituosa e cheia de incertezas. Me ensinou que é preciso desconstruir as preferências se almeja experiências novas e lições duradouras. Também me fez perceber que a indústria que tanto amo tem e sempre terá espaço para a criatividade, elevada aos níveis mais interiores do lúdico humano. Ao longo de minha trajetória de aceitação e admiração por Bugsnax, sinto que fui revigorado intencionalmente pela Sony e pela Young Horses. Passei a amar um universo meio inseto e meio comida, que tem muitas histórias para contar por trás das pizzas voadoras e melancias gigantes.

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