Opinião | A economia da ganância em Yakuza 0

Ambição e dinheiro pro alto nas ruas iluminadas de Kamurocho e Sotenbori

Gustavo Maganha Andria
Chá de entretenimento
7 min readFeb 22, 2021

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Precisa me olhar desse jeito? Até parece que comprei o Empty Lot… eu, hein!

Passear pelas estreitas ruas de Kamurocho, distrito fictício inspirado no iluminado Kabukichō em Tóquio, é perigoso em escalas proporcionais ao dinheiro que você carrega no bolso. Em meio ao “Milagre Econômico Japonês”, um projeto bilionário de revitalização investe em uma narrativa com tantas reviravoltas quanto notas de Iene. Os elogios direcionados a Yakuza 0 podem atingir diversos aspectos, como o próprio enredo, a ambientação, o desenvolvimento de personagens ou até mesmo a trilha sonora. Contudo, o que mais me chamou atenção foi a capacidade de transmitir poder e dominação por meio do dinheiro, em contraste com o que acontece em Yakuza Kiwami, por exemplo.

Ao falar sobre a “economia da ganância”, procuro expor as construções que são utilizadas em Yakuza 0 para realizar uma imersão indireta ao jogador em um país que vivia uma época, literalmente, de ouro. A apresentação monetária do game vai muito além das habilidades compráveis ou do dinheiro adquirido em combate, sendo responsável por um dos melhores fluxos de capital que presenciei em um produto de entretenimento.

Coloque um bilhão de Iene em sua carteira e venha construir comigo a Millennium Tower nesse projeto que levou economistas e yakuzas à loucura.

Lote vazio, bolsos cheios

A história de Yakuza 0 é levantada ao redor de um terreno minúsculo, chamado de “Empty Lot” (Lote Vazio). Curiosamente, esse lote é vital para a realização completa de um grande projeto de modernização de Kamurocho. Com o dinheiro fluindo pelas veias e maletas de todos os chefões do bairro iluminado, era de se esperar que empreitadas de grande porte surgissem, sejam para uma real modernização ou simplesmente para uma (não tão) boa e velha lavagem de verdinhas. A busca pelo proprietário do lote é rodeada por ganância, ambição e poder, destacadas de maneira brilhante entre os três tenentes que dificultam a vida de Kiryu, protagonista da série até o sexto título. Contudo, apesar da trama caminhar para trechos dramáticos, honrosos ou até mais sombrios, o capital ainda consegue comprar a maioria das cenas. Muita influência tem como epicentro o “Real Estate”, uma companhia que é utilizada para rivalizar a yakuza e intensificar a importância do dinheiro em um período de prosperidade econômica. Em certa ocasião, Kiryu é literalmente comprado por um valor astronômico e esse acontecimento me fez perceber que o enredo tão conturbado e complexo em sua totalidade tinha um núcleo maciço e inegociável. Explorar o desenvolvimento de uma narrativa com base no capital é tão desafiador quanto manter o assunto em pauta durante todo o processo. O primeiro acerto de Yakuza 0 é a forma como escolhe contar ao jogador que, aconteça o que acontecer, tem sempre grana envolvida.

Peraí… Um bilhão de Iene por ISSO?! Tá de brincadeira, né?!

Máquinas de dinheiro opcionais

Yakuza 0 apresenta dois minigames para que o jogador possa fazer seu próprio dinheiro de maneira mais consistente e abundante. Kiryu cuida da compra de propriedades para o Real Estate e Majima fica responsável pelo Grand, um cabaré popular em Sotenbori, bairro fictício que representa Dōtonbori. Ambas as atividades são altamente lucrativas, permitindo o investimento alto em novas habilidades, equipamentos e treinamentos. Com tanto fluxo de capital presente nas duas seções do game, o mais impressionante é o caráter opcional que abraçam. Após o tutorial de cada negócio, o jogador pode escolher ignorar e seguir o rumo do enredo principal sem ao menos pensar em voltar aos dois estabelecimentos.

Em jogos como Assassin’s Creed, em especial Brotherhood e Revelations, há essa mesma “máquina de dinheiro”, mas apresentada no formato de lojas e reformas pela cidade. A operação é semelhante ao que existe em Yakuza 0: você investe uma quantia X e tem retorno de 2X, por exemplo. Porém, as consequências por não aderir à “máquina” em Assassin’s Creed são muito mais graves do que as observadas em um jogo moldado sobre a bufunfa. Se Ezio não investe ou compra, acaba por ter mais dificuldade em adquirir equipamentos melhores e isso impede o ritmo de progressão geral do jogo. Já Kiryu e Majima, em teoria, não poderiam comprar tantas habilidades para melhoria caso escolhessem não ganhar uma montanha de dinheiro. O “em teoria” utilizado é justificado pelo prêmio monetário dado ao jogador após cada batalha e fim de capítulo. Em Yakuza 0, você ganha dinheiro fazendo absolutamente nada, e essa talvez seja a melhor explicação do porque o design feito em cima do fluxo de grana funciona tão bem no JRPG. Se o jogador tivesse de lutar arduamente para conseguir o único elemento que faz o jogo ter sentido, a taxa de desistência da aventura seria muito alta. Diferente do assassino italiano, Kiryu e Majima não ganham uma besta ou bombas conforme a campanha avança. As mentes criativas por trás de Yakuza sabem que o jogo não possui um sistema de progressão definido e, por isso, desenvolvem com criatividade uma forma orgânica de manter quem joga confiante de que está melhorando, seja com o dinheiro automático do 0 ou com o “Majima Everywhere” do Kiwami.

Muito me surpreendeu duas atividades tão complexas e elaboradas serem deixadas para o lado dos “opcionais”. É encantador ver a coragem colocada em mecânicas totalmente ignoráveis, mas indubitavelmente imersivas. Yakuza 0 joga dois potes de ouro fora quando escolhe dar ao jogador a liberdade de seguir o próprio rumo durante um milagre econômico. Bom, o que eram dois potes de ouro na época, não é?

Eu chegando no mercado pra comprar um Kinder Ovo.

Exageros mundanos

Se tem uma coisa que Yakuza 0 faz bem é exagerar. E a linha entre o exagero e o poder absoluto é fina como uma cédula. Para começar, cada inimigo derrotado te recompensa com uma quantia em dinheiro, que varia dependendo de como você o derrotou ou quem ele era (chefe ou mini chefe = mais grana!). Isso também serve para os valentões que você encontra pelas ruas de Kamurocho e Sotenbori. Yakuzas, brigões de rua, máfias, etc. Todos darão uma parcela de suas carteiras para os protagonistas do game, em uma forma exacerbada de se obter dinheiro. Tão intensa que acaba por se tornar chata, sendo quase um sacrifício parar pra enfrentar cada babaca que aparece na sua frente com “apenas” dinheiro de recompensa. O revirar dos olhos causado por mais um grupo te perseguindo dá lugar a mais uma mecânica genial de Yakuza 0. No mais clássico “tempo é dinheiro”, Kiryu e Majima arremessam Iene aos mil, comprando a paz e a passagem segura pela área desejada. Em situação em que era possível ganhar 10 mil em 30 segundos derrotando quem te incomoda, é preferível comprar o meio minuto com 5 mil e fazê-lo incansavelmente após adquirir a habilitar de se livrar da grana que tanto pesa no paletó. O exagero de ver as verdinhas voando enquanto senta a porrada nos inimigos tem a mesma medida de satisfação que vê-los se agachando para pegar as merrecas que você jogou na rua. O poder em Yakuza 0 vem por meio de números, ações e reações. Você reage ao mundo com desdém, pois cada um faz o que quer com um bilhão no bolso.

Entretanto, os “exageros” de Yakuza 0 não param na relação ganhar dinheiro/comprar tempo. A economia voltada aos itens, em especial consumíveis e comidas, é muito semelhante à encontrada em Yakuza Kiwami. Visitando um restaurante coreano, caro para a carteira do remake citado, é possível comprar todos os pratos gastando menos de 5% do seu valor atual de dinheiro. Isso também vale para bebidas em bares, que são limitadas apenas pela capacidade da personagem de ingerir álcool. O problema fica concentrado nos itens de cura, pois dá pra ter um estoque infinito. Em Kiwami era preciso pensar em uma quantidade satisfatória para as próximas missões, mas em 0 basta selecionar o número máximo de espaços no inventário e seguir com a vida.

Não perdendo o raciocínio, o mesmo acontece com os mini games. Gastei um bom tempo dançando para completar os desafios opcionais e nunca precisei me preocupar com o preço. 2 mil Iene rendem tentativas ilimitadas até você deixar o local. Em Kiwami, talvez fosse necessário pensar em quanto tempo ficaria se requebrando. Em 0… bem, 2 mil Iene é, literalmente, o troco do saquê de 30 anos que você acabou de tomar num bar chique.

Complementando, o poder em Yakuza 0 se faz presente na soberba de saber que você tem tudo e que também pode comprar tudo. Não é preciso fazer contas ou se preocupar se vai ter dinheiro para tal equipamento ou consumível, porque você VAI. É a melhor definição para uma “economia da ganância”.

“Venha conhecer meu cabaré. Só 1 milhão por hora :)”

Faces da mesma moeda

Yakuza Kiwami e Yakuza 0 compartilham mais do que motor gráfico, modelos de personagens e ambientação. Ambos fazem parte do “Projeto de Aniversário de 10 anos” da franquia e, em essência, se completam. Um sendo um remake de Yakuza e o outro sendo um prequel executado de forma majestosa e sólida, como a economia na época. Em um dos jogos, no qual o foco não fica direcionado ao dinheiro, sua cabeça é moldada junta à de Kiryu, pensando na redenção e em construir um futuro melhor. No outro título, o amanhã pertence a quem puder pagar mais e um tom dramático é adicionado para te lembrar que, apesar de tudo, você ainda está jogando um Yakuza. Aparentemente iguais, Kiwami e 0 trazem duas experiências completamente distintas, principalmente na forma em que encaramos o mundo de Kamurocho (e Sotenbori) à nossa volta. Estou ansioso para descobrir qual a próxima construção que iluminará as ruas de Kiwami 2, mas sei que a ganância que senti em Yakuza 0 foi uma verdadeira lição de valores (muito altos, por sinal).

Meu bairro quando chove…

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