Opinião | O subjetivo excêntrico de Going Under

Entre startups falidas e megacorporações, uma estagiária de marketing tenta começar uma carreira de sucesso (e conseguir um plano de saúde decente)

Gustavo Maganha Andria
Chá de entretenimento
6 min readFeb 6, 2022

--

Team17 / Aggro Crab

Estágio é um CAOS… e o estúdio independente Aggro Crab sabia muito bem disso ao desenvolver Going Under, um game exageradamente colorido e geométrico que traz consigo críticas sobre o mundo corporativo e a forma como lidamos com inovações tecnológicas. Explorando o gênero mais badalado dos últimos anos e evitando cair na mesmice, os desenvolvedores optaram por trazer uma experiência mais “linear” ao roguelike, dando um foco maior nas entrelinhas do enredo e no dinamismo do combate. O problema é que nem todos os alicerces que sustentam o título são executados com total maestria, deixando uma sensação estranha de subjetividade em algo que tem potencial incisivo e necessário.

A seguir, exploraremos aspectos da construção geral de Going Under enquanto a protagonista, Jacqueline Fiasco, é explorada pela Fizzle Beverages, que se recusa a pagar um salário pra menina.

Enredo de “brainstormings”

É comum um game roguelike ter dois extremos na abordagem de sua narrativa. Ou opta por algo enigmático e complexo de entender, deixando a história em um patamar opcional, ou prefere um viés mais desenvolvido, com trechos sendo contados em partes bem divididas e com uma ênfase significativa em seus personagens.

O exemplo do enigmático, bem mais corriqueiro, pode ser encontrado no último grande lançamento da Housemarque, Returnal. A história de Selene é propositalmente confusa e misteriosa e permite diversas interpretações e teorias, sem uma verdade absoluta. Entretanto, não entender nada do que acontece em Returnal não diminui os níveis de adrenalina de uma experiência com alienígenas e projéteis voando por toda parte.

Fonte: PlayStation Blog

Na narrativa mais desenvolvida podemos citar Hades e sua construção de enredo baseada em diálogos sequenciais e evolutivos, que acompanham a progressão de Zagreus em sua jornada para fora do submundo. O conceito em destaque é que Hades transmite a sensação de curiosidade no que está por vir em determinados momentos, mas Returnal não necessariamente tem o mesmo efeito pois não é sempre possível captar com exatidão o que Selene está passando.

Going Under consegue ficar quase perfeitamente no meio dos dois extremos ao apresentar uma narrativa potencialmente profunda e, ao mesmo tempo, elementos insuficientes que geram uma subjetividade inevitável por parte de quem joga. Você interage com vários personagens de características e personalidades distintas, mas nunca tem o bastante para conhecer cada um. Enfrenta chefes e passa por startups falidas, mas nunca compreende realmente o que aconteceu. Percebe críticas e anedotas inteligentes que tiram sarro do mundo corporativo, mas vê a pontualidade das observações se apresentar de forma gradativamente previsível. Jacqueline e seu entorno são carismáticos e interessantes ao ponto de fazer o jogador desejar saber mais sobre o universo… e receber apenas porrada dos monstrengos.

Fonte: Nintendo Life

Ninguém entende completamente Going Under e isso não está conectado a uma narrativa colocada de forma opcional. A subjetividade crítica é perigosa e gera muitos efeitos sobre um produto que tinha um potencial enorme de ser direto e claro no que queria dizer. O formato mais linear, o tempo de jogo mais curto e o valor de rejogabilidade baixo evidenciam que talvez tenha faltado um empurrãozinho de coragem pro pessoal da Aggro Crab colocar tudo que pensava no game e desenvolver mais a fundo cada aspecto do enredo. Como um brainstorming, existem muitos pedacinhos de ideias que juntos formam algo “concreto”, mas nem sempre bom.

Combate sem “briefing”

O combate de Going Under foi claramente projetado para ser caótico. Jacqueline não tem armas, então tem que se virar com o que encontra pelo caminho para derrotar os inimigos. Fiasco pode pegar basicamente qualquer coisa e usar no combate, mas com a baixa durabilidade de cada utensílio, a estagiária passa mais tempo procurando algo decente para nocautear o pessoal do que propriamente focada na luta.

A bagunça gerada pela constante necessidade de trocar o que se tem nas mãos faz o dinamismo de Going Under ficar rapidamente cansativo, pois existem graus de eficiência para cada coisa. Um vaso de plantas é muito mais lento do que um lápis ou uma picareta, e o tipo de golpe é diferente e praticamente ineficaz em confrontos mais difíceis. Isso gera uma necessidade do jogador de “burlar” o dinamismo e procurar apenas o que realmente interessa. Se não encontrar nada de bom e for um combate complicado, a possibilidade de game over é gigantesca.

Fonte: PlayStation Blog

Estamos acostumados com a aleatoriedade nos roguelikes, em que encontramos certas armas a cada tentativa e temos de nos adaptar à situação. Em Going Under, você sabe que as armas que gosta estão lá em algum lugar… e você irá procurá-las! Não é mais sobre saber usar um pouquinho de tudo, mas sim sobre encontrar aquela caneta de tablet com dano de choque que faz a luta contra o chefão ficar muito mais fácil.

Como escrito nas opções de acessibilidade, a premissa do jogo é ser difícil, mas a dificuldade anda em direção oposta ao game design de “superação” de um roguelike. Tentar, tentar e tentar até pegar o jeito não serve pra Going Under. Ache uma arma que goste e outra que seja muito forte contra determinados inimigos e é fim de expediente.

Fonte: PlayStation Blog

Visual “CTA”

A aparência de Going Under é impactante. Dá pra arriscar dizer que quem se interessa pelo título, enxerga a imensidão de cores e as formas arredondadas dos personagens como um fator atrativo, quase único em sua totalidade.

Visualmente, o jogo exerce muito bem o conceito de “beleza do grotesco”, em que vemos lindas artes de Jacqueline ou de nossos colegas de trabalho só pra descobrir que parecem feitos à base de massinha de modelar. Mais do que uma opção não realista ou um estilo mais simplificado por limitações no desenvolvimento, o charme da arte puxa toda a admiração por outras mecânicas e é o que fica como referência, impregnado na memória. Da imensidão do chefe de sabores, Fern, às feições esbugalhadas dos monstros do escritório Joblin, é fácil lembrar de Going Under.

Para quem tenta trazer tantos temas legais de serem discutidos com uma abordagem divertida, a arte rouba a cena e compra todas as ações disponíveis no mercado. O maior ponto positivo do game é também sua maior fraqueza. Going Under não consegue destaque na precisão de seus controles ou na temática que tanto tenta satirizar. Todo mundo acaba se lembrando muito mais das berinjelas e palmatórias presentes no ambiente propositalmente desavergonhado da dungeon de Winkydinky.

Fonte: Steam

Job entregue?

Going Under foi o primeiro projeto independente do estúdio Aggro Crab. Pra encarar o mundo agora saturado dos roguelikes, é preciso ter coragem. Fazer isso tentando inovar no tema, no combate e no visual, não é tarefa fácil.

Ao argumentar no texto sobre aspectos do game design, a sensação de desgosto pelo título pode ter se sobressaído, mas a verdade é que o potencial de Going Under será visto nas criações futuras do estúdio. A equipe deixa claro na execução do projeto que tem objetivos, ambições e não tem medo de tentar e errar. Faz parte do desenvolvimento!

O Aggro Crab tem grandes qualidades para se destacar no cenário de jogos, com o ganho de experiência ao longo dos anos na indústria, melhorará cada vez mais como estúdio. De maneira alguma a criatividade e a noção crítica da equipe vão acabar esquecidas ou serão grandes “fiascos”. No próximo título, deem ao menos um VR pra Jacqueline, por favor.

--

--