A vida é uma padaria

Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

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O meu pai, que era Francisco da Cruz, mas poderia ser de Assis, passou cinquenta anos atrás de um balcão de padaria. Foi o menino encarregado de tirar as tampinhas de baixo do estrado de madeira, padeiro, confeiteiro, caixa, chapeiro, o homem que fatiava a mortadela, carregava os sacos de fermento lá pra dentro, o fazedor de suco, servidor de café pingado com bons dias, gerente. Ele jogou nas onze. Até assaltado no lugar do patrão ele foi, com revólver apontado pra cabeça e outros bichos.

Se fecho os olhos e me deixo levar ao Jaçanã, o bairro onde cresci, vejo o velho dobrando a esquina da nossa rua, aquele andar tímido dele, o cardigan surrado de lã azul, na mão direita a sacola com oito pãezinhos e um litro de leite tipo B. É de tardezinha e faz frio. Eu largo a bicicleta no chão, corro pra ele com euforia e saudade. A gente se beija no rosto, se abraça, e o cheiro do meu pai, uma mistura de farinha, suor, cerveja e desodorante barato, talvez seja a lembrança mais potente que eu trago daqueles dias em que o mundo era pequeno e terno.

— É amanhã que eu vou trabalhar com você, pai?

— Isso. Amanhã é sábado, dá pra ir. Mas tem que acordar cedo, hein. A gente precisa chegar lá às cinco e meia, vai estar escuro ainda.

— Pode me chamar, que eu acordo.

Nem precisava, porque nesses dias eu mal dormia.

O meu pai está em cada linha deste livro. Ele já estava no Trombadas, um projeto que nasceu de meu desencanto com o jornalismo brasileiro e, sem que eu tivesse planejado, manteve aceso o lume de um jeito meu de estar na vida, que é escrevendo. Muito cedo, mesmo sem saber do que se tratava, eu defini o Trombadas, baseado em encontros com pessoas que eu “trombo” pelas ruas da cidade e publicado no TAB Uol: “É uma trégua. E um reencontro”.

Reencontro.

Primeiro com o Jaçanã, esse bairro no extremo norte da cidade feito de gente simples, casas baixas, botequins aos montes e fábricas que apitam na hora do almoço. Lugar distante, de campinhos de terra, benzedeiras, brigas, amigos assassinados, amigos fugidos para não ser. Domingos de missa, pastel de feira, vitrola tocando Beth Carvalho. Esse lugar cheio de cores de pele, meio bruto mas solidário, irredento e sonhador, onde de manhã eu podia ir pra escola na garupa da moto do vizinho traficante e à tarde voltar de carona na viatura do amigo sargento da PM.

Depois, mergulhando em abismos oceânicos, que é pra onde a escrita nos arrasta, um reencontro com meu pai, com a bondade tranquila e constante dele, com o meu pedaço de Francisco que um dia deixei fugir de mim. No Trombadas e nos textos que escrevo aqui, embora nas vozes de outros, eu me sou. É como se eu balançasse no ônibus com o velho rumo à padaria. Ir trabalhar com meu pai naquelas madrugadas de sereno e mãos dadas, demorei tanto a perceber, ocupa uma imensidão em mim. Encharca as histórias que eu ouço, me cortam e depois vomito no papel. Era na padaria, numa viagem em torno do meu pai, que eu aprendia sobre as coisas que importam. O velho gostava tanto daquilo, que dizia: “Quando ganhar na loteria, compro uma padaria pra mim”. Mas ir trabalhar com meu pai é jeito de dizer. Quem trabalhava era ele. Eu olhava e ouvia.

Os colegas de serviço dele me chamavam de Chiquinho. E, o mais bonito, em um carnaval de sotaques e alegorias que nunca me saíram dos olhos e dos ouvidos. Porque atrás do balcão de qualquer padaria de São Paulo fica o Brasil. Esses sotaques e alegorias semeiam a minha memória, que agora passeia pelas padocas diversas em que o velho trabalhou, na periferia, na “cidade”, com a gente se referia ao Centro, ou nos bairros dos bacanas. Não vejo os rostos, lembro dos nomes. O padeiro Ceará, Zelito dos frios, Bastião chapeiro, Marilena do caixa, o confeiteiro Jandir, Tonico e Vanda do café.

— Chiquinho, prova um sonho, acabou de sair.

— Vem cá, Chiquinho, me ajuda a levar esses risoles pra vitrine.

— Ai, ai, ai. Vai almoçar coxa-creme, Chiquinho? Deixa tua mãe saber…

— Chiquinho, corre lá e pede pro teu pai me fazer um vale, que hoje eu quero ir pra gafieira com a nega.

Eu ficava com a impressão que a turma gostava do meu pai. Sentiam algo bom nele. Respeitavam. Pela inteireza da dedicação e do compromisso com aquela vida atrás do balcão, mas principalmente pela infinita capacidade que ele tinha de harmonizar as coisas, mesmo na tempestade. O meu pai não gostava de tempo ruim. Ele era o homem que desanuviava. O cara que oferecia uma carolina recheada, um petit four que fosse, pros fregueses ranhetas. Um dia eu notei que essas vivências desaguavam inteiras, tão vivas, nas histórias que eu ouvia das pessoas “desconhecidas” com quem trombava e depois contava suas histórias. O Trombadas e este livro são isso, afinal: reencontros com desconhecidos que eu sempre conheci, porque sempre estiveram atrás do balcão da padaria, nas ruas do Jaçanã, no cheiro e no abraço do meu pai.

A sensibilidade de Cristina Abatte, coordenadora de IST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, de alguma forma captou isso. Primeiro como leitora do Trombadas e então como idealizadora deste livro. Depois de ler os dez textos prontos, numa reunião ela quis saber como tinha sido pra mim. Imaginei que ela perguntava menos sobre a prática do trabalho e mais sobre sentimentos e sensações. Me embananei numa resposta longa e confusa, mas, de novo, a Cristina entendeu tudo. Encontrar as pessoas, ouvir suas histórias e caçar as palavras que melhor mostrassem a grandeza delas foi como ir trabalhar com meu pai na padaria: sair de casa no escuro, caminhar pro clarão da vida acontecendo e olhar praquilo com fascinação e generosidade, como fazem as crianças.

Márcia, Tábata, Cícera, Djoasis, Flip e Gil, Jair, Rosana, Thaís, Welton, Thiago. Grajaú, Vila Romana, Santana, Centro, Liberdade, Penha, Jardim Angela, Cidade de Tiradentes. Tanta força, dúvidas, tantos recomeços, tropeços, certezas, choros, tantos desencontros, aflições, alegrias, derrotas, tantas vitórias nessas pessoas e nesses territórios. E o tempo todo uma força envolvendo e dando sentido a tudo: o compromisso com o serviço público de saúde, a esperança na vida, o cuidado com quem está ao lado, a dedicação ao trabalho de prevenção e tratamento da Aids em São Paulo.

Durante a pesquisa para este livro, repetindo o velho, levei meu filho Miguel pra trabalhar comigo, pra ele também ouvir, ver e sentir mais coisas que importam. Estivemos juntos em alguns encontros com as pessoas generosas que me contaram as histórias incríveis que registro a seguir. Foi uma jornada maravilhosa pra mim. Agora começa a de vocês. Torço pra que, virando a página, encontrem uma padaria cheia de sotaques, carolinas recheadas e bondade. O meu pai estará lá.

Prefácio do livro “Entre Tantos”, idealizado pela Coordenadoria de IST/Aids da Cidade de São Paulo e que pode ser baixado gratuitamente aqui.

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Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

Eu escrevo reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias