A vila, o Olimpo e o inferno

Na boca de completar 60 anos e retratado em novo documentário, Maradona vive como jogou porque jogou como vive, inteiro e no máximo: a glória, o infortúnio, a beleza e a tragédia. Por isso amamos odiá-lo, odiamos amá-lo e amamos amá-lo. Maradona somos nós

Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

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Maradona está morto. Na verdade nunca viveu. Este senhor baixinho e meio cocho que anda por aí na boca dos 60 anos, e também aquele gigante canhoto que bailou nos campos do mundo, é uma metáfora. Do futebol, do esporte, dos argentinos (eles acham que só deles), dos deuses opulentos e os pobres diabos, dos heróis, dos pecadores, de nós mesmos. Um paradoxo infinito, a ambivalência em tempo integral, nem isso, tampouco aquilo, tudo. São muitos Maradonas, todos num único. Maradona é Ahab, Moby Dick, Otelo, Iago, Judas, Jesus, Quixote, Sancho, Samsa, a barata. A barata! Maradona é Heitor, Aquiles, João Grilo e a Compadecida. Daí que Maradona não cabe. E se não cabe, não existe. Andy Warhol tentou fazer caberem outros como ele. Estão lá Elvis, Marilyn e Ali na parede: fantasmas saltando daquelas multicores e multicamadas para azucrinar nossas certezas, acossar nossos sonhos, enlevar nossas lembranças, desmesurar nossos medos. Maradona é a melhor serigrafia de Warhol, porque nunca feita. A realidade irreal. Uma ideia. Uma ficção.

Maradona é.

Somos.

Tentam delimitá-lo. Em dois, Diego + Maradona, ou até quatro: Diego + Maradona + o de dentro do campo + o de fora. Picotando-o esperam entendê-lo. Mas não se olha Maradona empiricamente, senão com a intuição. Não há equação que o explique, senão a poesia. Jorge Valdano, seu companheiro na seleção de 86, um vez definiu bem a necessidade de se deixar Maradona inteiro: não se aparta Maradona nem mesmo da bola, porque para ele, ao contrário dos outros, a bola não é algo a ser dominado, já que mero prolongamento de seu corpo. Não se aparta Maradona também do campo, sob o risco de a grama morrer de tristeza, como mostra, num rasgo de realismo fantástico, a minissérie Maradona no México da Netflix, que narra seus dias como treinador do Dorados de Sinaloa em 2018/2019. Portanto, retalhar e encaixotar Maradona, no máximo, abranda o nosso tormento de amar odiá-lo, odiar amá-lo ou, a melhor opção, amar amá-lo. “Maradona daria mais um romance do que um conto. Assim o narrador poderia compartilhar suas perplexidades com ele ou abordá-lo a partir da rejeição”, anotou um dia o escritor Adolfo Bioy Casares. Restamos pois com seus pedaços. Migalhas esparsas que saciam a fome mais imediata. Elas estão voando com o vento.

No recente documentário Diego Maradona, de Asif Kapadia, que se concentra nos tempos de glória e queda no Napoli, 1984–1991, há boas dessas migalhas. A primeira, jogada por seu antigo preparador físico, Fernando Signorini: “Eu aprendi que um era Diego e outro era Maradona. Diego era um menino cheio de inseguranças, um garoto maravilhoso. Maradona é um personagem que ele teve que inventar para enfrentar as exigências do negócio do futebol e da mídia. Maradona não podia permitir nenhuma fraqueza. Um dia eu lhe disse: ‘Com Diego eu iria até o fim do mundo, mas com Maradona não daria um passo’. E ele me respondeu: ‘Sim, mas se não fosse por Maradona eu ainda estaria em Villa Fiorito’”.

Maradona não se seria se tivesse nascido na Recoleta, em Palermo, San Telmo ou mesmo em La Boca, qualquer lugar fora dessa favela miserável de esgotos a céu aberto da Grande Buenos Aires. Não há luta de classes aqui, ainda não. São seus desejos mais profundos roncando como um motor. “A verdade é que eu fui jogar futebol pensando em comprar uma casa para meus velhos e nunca mais voltar à Villa Fiorito”, ele diz, em off, no filme. O casebre com teto de lata e cômodos separados por cortinas da Villa Fiorito é o lugar de onde Maradona sempre quis sair e ao mesmo tempo o qual ele nunca permitiu que saísse de dentro dele. Calle Azamor, 523. Ninguém nasce impunemente num endereço com amor e 10 no nome. Azamor, 5+2+3.

A outra migalha de Kapadia é tratar as quartas-de-final da Copa de 86, no México, como a definição total de Maradona. Aquele jogo contra a Inglaterra, com um gol de mão e outro driblando meio time adversário, seria a representação mais completa e precisa que se pode alcançar dele. Como se os dois lances cravassem as letras de seu epitáfio: “Maradona, trapaceiro e genial”.

Escorado no fato de viver na cidade com a maior taxa de psicólogos por habitante no mundo, algum portenho dirá que o Maradona de 22 de junho de 1986 no Estádio Azteca é o arquétipo da nação argentina. Que ali, em duas pinceladas, ele pintou o retrato mais eloquente e definitivo de seu povo. Numa delas, a mais sutil, estava a transgressão delicada, sofisticada, quase de foulard e, diante da repreensão dos puros, beata: “Fue la mano de Dios”. Na outra, a mais carregada de tinta, uma exaltação do talento individual, do exagero, de certa arrogância. O poder do homem que, de posse apenas de seu corpo, empreende feitos extraordinários só porque disseram que não podia. Juntas, as duas pinceladas formam uma espécie de magnum opus do Rio da Prata. E são desprovidas de vaidade, claro.

Mas fora do pampa, onde mais ninguém se suicida pulando de cima do próprio ego, não nos custa tomar a obra de arte de Maradona — e ele mesmo, seu jogo, sua vida — como uma redenção maior, latino-americana. “O clamor do oprimido expressando uma retumbante vocação emancipadora. Um grito libertário apelando a uma ação subversiva contundente”, escreveu Gustavo Bernstein em Maradona — Iconografía de la patria. O opressor, no caso e na história, a potência colonizadora, exploradora, saqueadora, símbolo e signo de todos os nossos males, amém.

Entre os dois gols, Maradona gosta mais do de mão. “Foi como se batesse a carteira dos ingleses.” Mas é o segundo, imaculado, celestial, que preferimos cultuar, crentes carentes caretas que somos. Este, porém, seu autor diminui. “Se Fenwick tivesse me largado eu conseguiria passar a bola a Valdano, que estava sozinho na frente de Shilton”, ele relembrou, lance por lance, em sua autobiografia Yo soy el Diego. Mas Fenwick, zagueiro inglês, resistiu. Maradona foi obrigado a dribla-lo também e a continuar de peito estufado até o gol. Mais tarde, no vestiário, ele contou a Valdano que o viu correndo livre durante jogada inteira, só que não teve como lhe tocar a bola. “Você marcou esse gol e estava me vendo? Você me ofende, me humilha, não é possível!”, espantou-se o camisa 11.

A história está cheia de gols inesquecíveis, tantos que mal conseguimos lembrar. Mas, ao contrário deste de Maradona — e do de Pelé contra o Uruguai em 70, depois de desnortear o goleiro Mazurkiewicz (sim, aquilo foi um gol; a bola chutada pra fora, um capricho) — nenhum outro melhora com o passar do tempo. “Ainda acordo suado à noite tendo pesadelos”, confessou o volante inglês Peter Reid, aturdido 20 anos depois. “Tive vontade de parar e aplaudir Maradona.” Quanto mais vemos o segundo gol de Maradona contra a Inglaterra mais gostamos dele — dele, o gol; dele, Maradona, você pode escolher. Por quê? Questão de caráter. Impossível assistí-lo sem um sorriso na cara. É um gol que nos extravasa e nos impõe certas condições. Quem já o viu não pode ir ao botequim e, sentado atrás de um copo até aqui de mágoas, lamentar que nunca foi feliz nessa vida.

O filme de Kapadia tem o mérito de nos permitir sorrir chorando, mesmo sóbrios. Não há outra coisa a fazer desde o rodopio inicial de Maradona, ainda no campo de defesa, narrado por Victor Hugo Morales, um gênio uruguaio que, pelo rádio, transformou a partida em milonga. “Desculpem, eu quero chorar. ¡Dios santo! Vida longa ao futebol”, ele vai enfileirando depois do grito de gol. “Diego Armando Maradona! De que planeta você veio para deixar pelo caminho tantos ingleses? Para que o país seja um punho cerrado gritando pela Argentina? Gracias, Dios. Gracias por el fútbol, por Maradona, por esas lágrimas.” É nessa hora que enxugamos os olhos e pensamos: pobre de quem nunca estivemos numa arquibancada girando a camiseta sobre a cabeça e cantando “Olê-olê-olê-olê! Dieego, Dieego!”

Sobra-nos, e não é pouco, assistir ao próprio Maradona entoando esse cântico em outro documentário, Maradona por Kusturica, de 2008. Melhor que o de Kapadia, porque menos linear, menos comportado, mais poético, inteiro, mais Maradona — assim como seu diretor, o guitarrista, cineasta e porra-louca sérvio Emir Kusturica. São dois iconoclastas conversando sobre o que faz a humanidade caminhar: morte, sexo e Deus, incluindo aí as subdivisões futebol, dinheiro e política. O filme de Kusturica tem muita política. E Maradona não dribla pergunta nenhuma. “Quando nasceu esse seu senso de justiça?”, quer saber o diretor. A resposta sem firula: “Depois de ler Che Guevara, sobre Cuba, ver o mundo”.

Segundo Kusturica, se não jogasse bola o menino de Villa Fiorito teria dado um grande revolucionário. Quem? O Maradona dos casacos de pele? Que sacrilégio. Os reaças de plantão, com sua arrogância senhorial, vibram: “Olha lá o Maradona de Che tatuado no braço, Fidel na perna, consultando as horas em seu Rolex para ir de Mustang tomar Romanée Conti em Puerto Madero.” Os comunistas, por sua vez, bufam: “Esqueceu de onde saiu? Abandonou os da sua classe? Um narcisista conspurcando o altruísmo de Che”. E então, suave como um doce de leite, a maldita polarização encontra um fim. Todos concordam que Maradona é um hipócrita, um lúmpen e o ópio do povo.

Que tolice.

Ok, Maradona não tem um plano de luta, não se interessa por ações políticas, sente ojeriza da burocracia partidária. No máximo diz que se mudou para Dubai (Dubai!) em autoexílio político para protestar contra o governo neoliberal de Macri. Mas, não, cabrones! Não neguem a Maradona a única doutrina pela qual ele sabe viver e jogar: a rebeldia, o inconformismo, a subversão, o rechaço a qualquer tentativa de domesticação. Deixem-no exaltar a figura do compatriota que, empunhando revolta, coragem e um fuzil velho, chapelou os poderosos. Maradona podia tatuar São Miguel, David (o do Golias), ou Robin Hood. Só que nenhum deles jogou bola nem era argentino. Che sim. Por isso a sua relação com Guevara é simples, carinhosa e até indulgente, pois autorreferencial.

Além do mais, queriam o quê? Que o cabecita negra das franjas da América Latina rompesse com os sistemas mais duros e inclementes dentro do campo, mas fora dele abraçasse o establishment como Cristiano Ronaldo e Neymar (bem, deixemos Pelé de fora disso)? Sim. Queriam ligar a TV na hora do jogo para se arrepiar com um Dionísio transgressor, inebriante e louco, mas que na hora do telejornal ele já estivesse vestido de Apolo: lindo, recatado e do lar. Maradona é os dois. Ora aquele, ora este, e muitas vezes ambos ao mesmo tempo. E uma porção de outros. Todos somos, ou deveríamos ser. A diferença, e o que o torna Maradona, é que ele não esconde nem se esconde. Seus diversos Maradonas estão na praça. Assim, como anotou Gustavo Berstein, a esquizofrenia que seus detratores esperam dele “não é mais do que uma projeção de suas próprias misérias: o que aplaudiam em campo lhe censuram na vida”.

Não deixa de ser com a mesma soberba, encharcada de moral cristã, que falam do vício de Maradona em cocaína. Kapadia e Kusturica não julgam. Kapadia trata jornalisticamente: a máfia napolitana, os dopings, o abismo — fatos. Kusturica trata maradonianamente: “Emir, sabe que jogador eu teria sido se não tivesse tomado cocaína? Que jogador nós perdemos!”, fala Maradona, de mãos em prece. E continua: “As pessoas poderão dizer que eu estou bem. Ou que estou melhor. Ou que estou melhor que ontem. Mas ninguém está dentro de mim”. E então ele conclui com uma frase que, em castelhano de Villa Fiorito, soa deliciosamente imprecisa a ouvidos ruins como os meus. Ele diz Yo la culpa que tengo. Mas ouvimos, queremos ouvir, Yo soy la culpa que tengo. E então não é mais Maradona sentado ali. É Caravaggio, o gênio que matou um homem e transformou a tragédia e sua penitência na pintura mais intensa e espetacular da história.

E, enfim, chegamos a Messi, o que mais se aproximou de vestir a 10 da Argentina sem que sobrasse demais na largura e no comprimento. Messi está mais perto de Maradona do que do terceiro colocado, Riquelme. Mas se a camisa lhe caiu bem, a alma do antigo proprietário não foi junto. Nas imediações da Bombonera, ela triscou em Riquelme, mas logo deixou aquele corpo que não lhe pertencia. Em Messi, o catalão de Rosário, nem isso.

Arrisco duas explicações. E não vou ligar para estatísticas que “provam” que Messi é melhor que Maradona. Desculpem, mas levem essa masturbação pra lá. Me concentro de novo na poesia, porque o futebol merece. E também numa revelação que não estará em documentário nenhum. Por contá-la é provável que Maradona me mande chupar una pica. Mas lá vai, Bioy Casares me autoriza: Maradona jamais poderia transferir sua alma a Messi porque não é argentino, é brasileiro. E qualquer um sabe que no futebol os espíritos só baixam em cavalos da mesma nacionalidade. Edmundo, por exemplo, é Heleno de Freitas. Pagão, do Santos, voltou Roberto Firmino. E Jorge Mendonça continua aquecendo para reencarnar.

Mas retomemos. Como um Alfredo Le Pera que saiu do Bixiga para compor os tangos mais famosos de Gardel, Diego Armando Maradona é mineiro de Três Pontas. Morto-metáfora que sempre esteve, jamais reencarnaria em um craque de nosso maior rival. As provas estão na canção Caçador de Mim, que Milton Nascimento canta para ele.

“Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim

Você pode acreditar ou não. É uma escolha. Mas eu tento te explicar de outro jeito. Messi joga futebol por diversão, como se estivesse num carrossel de cores pasteis e cavalinhos idílicos. Maradona joga por raiva (“Todo domingo é dia de revanche”, disse uma vez) e por amor. E a raiva e o amor doem.

Publicado originalmente na revista Placar, em fevereiro de 2020

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Christian Carvalho Cruz
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