Dia de reis
Do X-Barroca ao camarote do Itaquerão, a jornada de Otávio Pikachu na Copa de 2014
Quando o Pelé marcou seu milésimo gol, duas cenas além do próprio feito chamaram a atenção naquela noite de 19 de novembro de 1969, no Maracanã. Primeiro, o goleiro argentino Andrada, do Vasco, esmurrando o chão em lamento desesperado por não ter defendido o pênalti — como se evitar o gol número 1.000 do Rei do Futebol fosse mais importante do que tomá-lo. A segunda cena foi a do Pelé correndo pra dentro das redes, onde pegou a bola, beijou-a e disse aos microfones que o afogavam: “Vamos proteger as criancinhas necessitadas”. Nós não protegemos.
Na última terça-feira, o Pelé esteve com uma dessas crianças no camarote da companhia aérea Emirates, da qual é garoto-propaganda, na Arena Corinthians em São Paulo. No campo, a Argentina venceu a Suíça por 1 a 0 e avançou às quartas-de-final. No camarote, o Otávio Liberti dos Santos, de 14 anos, mas miúdo como se tivesse 10, devorava cada novidade com uns olhos esfomeados de proteção. Ninguém ali precisaria ter majestade ou marcado um mísero gol para sacar que o Otávio, 44 anos depois do apelo do Pelé, integra o time de crianças necessitadas do país da #copadascopas. Porque o abraço que ele deu no Pelé foi um abraço de quem pouco abraçou ou foi abraçado na vida.
O Otávio mora na Barroca, favela vizinha à Cohab Artur Alvim, a uma distância caminhável do Itaquerão. Antes da construção do estádio, ele nadava na lagoa que existia ali e era formada por uma bica d’água, um racho na pedra conhecido como Vagina do Diabo. Na verdade, o termo era outro, mas impróprio para este horário. Menino calado, retraído, o Otávio foi escolhido para estar no camarote em dia de Copa por causa do seu enorme talento como atacante do time sub-15 da Cohab, a Esfuco (Escola de Futebol da Cohab). Mas não só. Foi escolhido também por causa do seu temperamento à la Edmundo e da fragilidade de sua existência. Nos campos de terra do conjunto ele é chamado de Pikachu, nome do Pokémon elétrico das animações japonesas. Os dois são calminhos a maior parte do tempo, mas explodem por nada. Pikachu manda raios nos inimigos. Otávio manda tomar naquele lugar. “Os moleques da favela fazem isso comigo. Me xingam, me batem. Aí no futebol faço também”, ele simplifica.
Quem pensou em convidar um dos garotos da Esfuco para um dia com o Pelé foi um relações públicas da Emirates que nasceu e cresceu na Cohab Artur Alvim. E quem escolheu o Otávio entre os seus 80 alunos foi o técnico do time, o Anaildo do Nascimento, que sempre que vai falar do Otávio começa a frase por “infelizmente”.
“Infelizmente, o Otávio é um menino que eu tenho medo de perder”, diz o Anaildo, um eletrotécnico de formação, também ex-morador da Cohab e que volta lá de forma voluntária para treinar o Esfuco. “Perder não do time, no qual ele faria falta, pois é bom de bola, dedicado, não falta aos treinos e ainda ajuda com os uniformes e até na organização do salão da nossa sede, que alugamos para levantar uns trocados.” O temor, continua o Anaildo, é perdê-lo para as coisas “erradas da vida”. “Infelizmente, o Otávio é um desses garotos desde muito cedo expostos cotidianamente a situações que criança nenhuma deveria conhecer.” A vida do Otávio, infelizmente, é uma coleção de infelizmentes.
Infelizmente, o pai e a mãe dele têm problemas com a bebida. “Fui eu que botei fogo na casa mesmo. Preciso assumir. Bebi e fiz a cagada. Mas melhorei, não bebo mais”, diz a mãe Rosana Liberti, de 49 anos. Ela se casou aos 12 com o pai do Otávio, Silvano dos Santos, que tinha 18 na época e hoje, vendedor ambulante de agulhas de costura, tem 55. Diz que foi quarto-zagueiro do juvenil do Corinthians, mas quebrou o joelho.
Infelizmente, os pais do Otávio brigam. “Tá vendo esse roxo? Ele me pegou na traição ontem. É um homem bom, pai dos meus dez filhos, mas a cachaça estraga as pessoas”, prossegue a Rosana, apontando o machucado no canto direito da boca.
Infelizmente, um dos irmãos do Otávio está preso por tráfico e outro, internado numa clínica para alcoólicos. “Um rapaz bom, você precisa ver, mas tomava quatro barrigudinhas por dia”, diz a Rosana. Barrigudinha é a garrafa rechonchuda de meio litro pinga clandestina vendida por R$ 1 nas espeluncas da cidade. Infelizmente, o Otávio chora quando falam desses dois irmãos. “Eu sinto saudade deles.”
Infelizmente, parte da grande família do Otávio — o pai, a mãe, ele, seis irmãos e três cachorros, moram numa casa bem apertada, de dois cômodos, nas entranhas da favela. Tem uma cozinha/área de serviço com fogão e tanque (a geladeira fica fora) e uma sala/quarto com duas camas e uma TV.
Infelizmente, o Otávio não tem o que fazer quando não está na escola. Aos sábados e domingos, treina e joga na Esfuco. Durante a semana, fica por aí. Quando o gerente permitia, empacotava compras num mercado. “Mas um dos moleques que empacotavam comigo quis roubar as compras de uma mulher e aí não deixam mais.” Com o dinheiro das gorjetas, o Otávio ia jogar na lan house ou comer o X-Barroca, seu sanduíche preferido. Pão, hambúrguer, linguiça, queijo e maionese. “Sem salada”.
Então, o Anaildo resolveu escolher o Otávio para conhecer o Pelé — e ver Messi e cia. em campo — na esperança de que a jornada especial ajude a esclarecer, na prática, a filosofia que ele infatigavelmente repete ao garoto: “Sonhar não tem limite e a pobreza não determina o nosso destino. A vida é feita de escolhas, cabe a você seguir o melhor caminho”. Mais ou menos o que diria mais tarde o Stephane Perard, diretor-geral da Emirates no Brasil. Francês casado com uma brasileira, pai de duas filhas e morador de Salvador por dois anos, onde antes comandou o Club Med, ele falou que conhece e se choca com a realidade das crianças brasileiras. “É claro que trazer o Otávio aqui é pouco. Mas pode servir de inspiração, pode ajudá-lo a acreditar que coisas boas também acontecem”, afirmou. E o Anaildo concluiu: “Esse dia vai ser uma referência para a nossa relação. Agora, nos dias difíceis dele, eu vou poder dizer ‘lembra aquele dia bacana, de privilégios, que passamos no Itaquerão?’”.
O Otávio vai lembrar. Principalmente porque foi o jogador favorito dele, e não o do resto do mundo, que definiu a partida: o argentino Di María. Na caminhada até o estádio, ele fez só uma pergunta. Quis saber se conseguiria os copos plásticos de refrigerante que vêm com o nome dos times e o dia do jogo. Na abertura da Copa, quando pôde apenas rodear de longe, bem de longe, o circo, ele pediu a torcedores e ganhou três desses copos. “Vendi dois por R$ 10 cada e o outro dei pra uma menina beijar um amigo que nunca tinha beijado”. Passados todos os postos de controle e checagem de ingresso, o Otávio adentrou o Itaquerão pelo chamado informal e cafonamente de portão monumental. Ele não deu a mínima para a escadaria de mármore grego sobre a qual caberiam dezenas de casas iguais a sua. Pisou nela como todo mundo, doido para ver o campo. Já na ala dos camarotes, passou batido pelo bufê do chef Charlô Whately (carpaccio, ravióli, salpicão e outras comidas que ele nunca ouviu falar), driblou o garçom e as duas aeromoças da Emirates e foi se debruçar sobre o balcão de vidro que dá para o campo ainda vazio. Ficou ali sozinho, quase imóvel, por mais de uma hora. Desgrudou de lá só para bater palmas quando a Argentina entrou em campo para se aquecer. Quer comer, Pikachu? Não. Quer um refrigerante? Não. Quer ir ao banheiro? Não. A ansiedade lhe forrava.
Quando o Pelé pisou no recinto, faltando 5 minutos para o jogo começar, o Otávio enfim deixou seu posto de observação e veio abraçar o Rei, que retribuiu de maneira sincera e ainda inventou quando se soltaram: “O Otávio me pediu pra não contar, mas me disse que vai comigo jogar no Santos”. Nada além de uma gentileza retórica, mas o Otávio riu sem graça e passou o braço direito de novo em torno da cintura do Pelé. O Anaildo, que jurou não ter ensaiado nada pra dizer naquela hora, se apresentou assim: “Nascimento, Anaildo do Nascimento”.
Durante o jogo, o Pelé distribuiu simpatia, fotos e autógrafos a embasbacados fãs argentinos, australianos, ingleses, americanos, mexicanos e brasileiros dos camarotes vizinhos que traziam o celular numa mão e uma taça de espumante noutra. No intervalo, o Rei deu uns minutos de exclusividade pro Otávio. Chamou-o para tomar um suco e caprichou na letra dos autógrafos que deitou nas duas camisas trazidas pelo Anaildo numa sacolina de papel. Uma era do Brasil, mas foi a do Esfuco que deu ao Pelé o mote para falar com o Otávio olhando pra ele, como um avô que conta histórias ao neto. “Azul e branco, hein?! Sabe que, quando eu comecei, essas eram as cores do meu time, o Baquinho, o Bauru Atlético Clube? Já ouviu falar? Essas cores me deram uma sorte danada.” O Otávio, meio vidrado nos grandes e cansados olhos do Pelé, sorriu. Depois disso ele até se soltou para acompanhar os gritos de “Argentina! Argentina!” vindos da torcida e, aflito, secou o batedor de falta suíço repetindo “não, não, não, não, não” até que a bola parasse na barreira.
Na volta pra casa, de novo a pé, o Anaildo quis saber se o dia tinha sido melhor do que uma excursão à Praia Grande (SP) que até então o Otávio classificava como o melhor momento da vida dele. Atordoado, ele nem ouviu direito. E no meio da massa os dois sumiram. Sumimos todos. Os argentinos foram encher a cara na Vila Madalena. O Pelé, escoltado por um guarda-costas londrino e 1.283 gols, foi para a sua casa no Guarujá. O Stephane, para a sua cadeira de alto executivo de multinacional. Eu, para os meus filhos bem nutridos que têm a estatura correspondente às suas idades. O Otávio para a Barroca dos seus infelizmentes. Vai, Brasil. Como muito orgulho, com muito amor.